30.11.10

sobre a prática do futuro

Reproduzo abaixo um texto de Artur Araújo que sintetiza com aguda perspicácia os desafios políticos que nos reserva o futuro. Creio que a temática explorada por ele é a questão mais importante para as esquerdas brasileiras e para que possamos seguir por um desenvolvimento econômico e social que não descambe para o populismo liberal-conservador.

---------------------------
A hora e a vez dos partidos

Artur Araújo

“Antes nós tínhamos idéias e não tínhamos votos; agora temos votos e não temos idéias.”
(citado por Marco Aurélio Garcia, em entrevista ao “Le Monde Diplomatique”)

“A metade da sabedoria [...] de nossos estadistas se baseia em supostos que foram verdadeiros, ou parcialmente verdadeiros, em sua época, mas que agora são cada vez menos verdadeiros, à medida que passam os dias. Temos que inventar uma nova sabedoria para uma nova época. E, entretanto, devemos - se havemos de fazer algo de bom - parecer heterodoxos, incômodos, perigosos e desobedientes com os que nos têm forjado.”
(Lord Keynes, “Essays in Persuasion”)

Os antecedentes, resultados e desdobramentos das eleições brasileiras de 2010 exigem acrescentarmos às categorias “Estado” e “Nação” – chaves essenciais do ciclo iniciado em 2003 – os Partidos Políticos, como instrumento insubstituível para a continuidade e aprofundamento das tarefas de caráter democrático e popular a que se lançaram as forças progressistas no país.
Do ponto de vista destas forças políticas o processo eleitoral e a geografia social do voto permitem realçar três componentes. O primeiro é um crescente esgotamento do ciclo dos “bolsos e estômagos”; o segundo, a possibilidade de reabertura da interlocução com a intelligentsia; o terceiro é o “desafio jovem”.
O cenário conjuntural de início do governo Dilma, por sua vez, coloca em pauta dois outros elementos: a “arbitragem econômica” e o encerramento do período marcado pelo protagonismo pessoal de Lula.
A combinação destes cinco aspectos anuncia o início de novo período, em que aos partidos caberá papel em muito diverso e superior ao até agora deles exigido.
Redução de miséria absoluta; integração de enormes contingentes ao mundo do consumo; e um ciclo virtuoso de crescimento do emprego, da renda do trabalho e dos lucros marcaram o Brasil, notadamente a partir de 2006. Estas foram as bases objetivas das vitórias eleitorais das esquerdas e dos níveis inigualados de aprovação de seus governos.
Tais fenômenos, no entanto, são também os responsáveis pela criação de uma nova gama de interesses e aspirações no eleitorado, como que um “preço do sucesso”.
As camadas médias “tradicionais” - particularmente das regiões sul e sudeste e em parte significativa do cinturão agrícola do centro-oeste e norte - manifestam preocupações nítidas com a afluência dos “de baixo” e nem os ganhos econômicos que vêm experimentando são suficientes para superar suas desconfianças em relação às políticas em curso.
Ainda não vêem no desenvolvimento sustentável calcado na expansão do mercado interno e na presença ativa do Estado um caminho que lhes assegure seu “lugar ao sol”. Ou, no mais das vezes, ainda se mostram prisioneiras do Brasil da casa-grande & senzala e temem perdas de relevância e status.
Já a mal denominada “nova classe média”, ainda que tenha se mantido majoritariamente ao lado das forças governistas, dá mostras de baixa “fidelização”, incipiente politização e fragilidades que permitem sua manipulação religiosa ou ideológica.
Perigosas, por reducionistas, as metáforas na análise política podem, no entanto, estabelecer imagens úteis. Os assalariados brasileiros, oriundos de qualquer desses segmentos (ou do proletariado “clássico”), terão seus corações e mentes crescentemente disputados, no curto e médio prazos, por dois possíveis “modelos” de sociedade: as alternativas “americana” ou “européia”.
A alternativa “americana” – centrada no mercado; no indivíduo; na focalização das ações sociais; e na redução do Estado aos seus mínimos patamares – seduz nossa mídia, a direita nativa e frações expressivas das camadas médias “tradicionais”. É como um “veio natural” para o desdobramento da conjuntura e organização do futuro nacional e pode vir a ser síntese das aspirações dos recém-chegados ao consumo.
A rota “européia” – alicerçada em Estado regulador e intervencionista; em sociedade com alto grau de organização e ação coletivas; na universalização dos programas sociais; e no contínuo balizamento dos mercados – é uma opção a que se deve convencer a sociedade brasileira, particularmente a “nova classe média”, que tem alcançado seu novo patamar de consumo e cidadania exatamente por efeito de políticas desse corte.
Os casos da juventude e da intelligentsia são também vitais.
Quanto à primeira, basta lembrar que, em 2014, eleitores da faixa etária dos 16 aos 28 anos nunca terão experimentado, pessoalmente, a realidade de governos neoliberais e seu convencimento não se dará pela antítese do passado, mas pela perspectiva do futuro que se lhes ofereça.
O mundo acadêmico, das artes e da cultura, estratégico na batalha de idéias e na construção de hegemonia, só se manterá cético em relação à via “americana” se lhe for oferecido mais que o mero susto que a radicalização à direita da campanha de Serra provocou.
Tais tarefas não se executam trilhando solitariamente nenhum dos caminhos até agora adotados: o apelo comparativo ao passado recente; a repercussão de ganhos materiais (os “estômagos e bolsos”) ou um chamamento abstrato à solidariedade e ao progresso. Exigem muito mais.
Exigem, centralmente, a explicitação de um “Projeto de Brasil”, compreensível, factível, articulado e gerador de entusiasmo social efetivo. E falar em projeto é, antes de tudo, falar de partidos, instrumentos sine qua non para tanto.
É também no campo partidário que se encontra a chave de articulação das outras duas características conjunturais:
a) a complexa tarefa de arbitragem macro e microeconômica que o cenário externo (principalmente) e os próprios desequilíbrios econômicos internos colocam em pauta (redução de juros; reequilíbrio cambial; controle inflacionário; recuperação da capacidade investidora do Estado e do capital nacional; crescente demanda por recursos públicos para programas sociais universais; as consequentes alternativas tributárias; etc.);
b) a substituição dos mecanismos de representação política, centrados na figura do presidente da República, por alternativas mais “despersonalizadas” e institucionais.
A superação dos desequilíbrios econômicos, ainda mais em cenário internacional crítico, não será fruto de “golpes de mão” – do ippon tão pregado por Collor e tão ao gosto de economistas de poltrona – mas de um longo e monótono ciclo de medidas pontuais, ainda que com ponto de mira: o aumento da participação da renda do trabalho na renda nacional; o financiamento dos serviços e obras públicas; e a geração contínua de poupança pública e privada que financie o desenvolvimento da nação.
Essa delicada arbitragem diuturna exige muito além do que possam fornecer um corpo técnico ou a vontade monocrática da presidenta. É uma tarefa política em sua mais ampla acepção, é uma tarefa partidária por excelência. Se a isso se soma a saída de cena do “partido em forma de gente”, que Lula corporificou no último período, mais clara se coloca a exigência dos novos tempos.
Esta é a hora e a vez dos partidos.

------------------------------
Como complemento ao debate e pensando nas peças que deverão compor essa arquitetura do futuro, sugiro também um texto que escrevi recentemente "a hora e a vez da classe média".

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caro leitor, se você não está conseguindo incluir seu comentário, tente fazê-lo assinando com a opção "anônimo".