11.3.16

gol de gandula vale arnaldo?

Vai começar a partida.
Bola rolando em Pindorama.
Sergio Moro ergue a cabeça e sai tocando no meio campo,
passa curto para o lateral Merval,
Merval vê o campo livre e avança pelos flancos do gramado,
Já na intermediária inverte o lance para o volante Japinha, um verdadeiro carregador de piano desse time,
Japinha tabela de volta com Moro que inverte o lance para Lo Prete.
Lo Prete põe a bola no chão,
cadencia o jogo buscando encontrar buracos na defesa adversária,
No cortaluz aparece com rapidez e oportunismo o destro Carlos Fernandes,
Ele ameaça, cisca, gira, gira mais uma vez, chama a atenção do adversário para sí,
Mas sem muita habilidade acaba deixando a bola novamente com o capitão Sergio Moro.
Moro finta um, finta outro e lança em profundidade o ponta Janot,
É cheiro de gol,
Janot com determinação corre para a linha de fundo, deixa o adversário vencido e cruza com precisão para a pequena área,
Olho no lance!!!
A defesa está desnorteada,
O goleiro corre para cortar o cruzamento,
Ripa na gorduchinha!


Ihhhhh!


O gandula invade o gramado, se antcipa e finaliza com entusiasmo para o fundo do gol.


É gol do gandula.


Um silêncio ensurdecedor toma conta da Pindorama Arena.







19.8.15

a república das margaridas


Depois de tocar o fundo do poço, a Presidenta Dilma parece que resistirá no cargo. Subitamente, num espaço de poucos dias, os líderes da conspiração golpista se deram conta do estrago que provocariam no país caso se efetivasse o golpe. Aos 45 do segundo tempo perceberam que a queda de Dilma esgarçaria de vez o tecido institucional do país e a convulsão social jogaria a nação numa crise econômica disruptiva que, em última instância, lhes alcançaria os bolsos.

E quem foi que pôs o guizo no gato?

Por certo, não foi por zelo democrático, espírito republicano ou lustro ético que os donos do poder resolveram retroceder no golpismo. O que lhes impediu de cruzar a linha de giz foi a percepção de que os movimentos sociais tomariam as ruas e não aceitariam a ascensão de um governo golpista a esta quadra de nossa história.

Seria, portanto, equivocado e injusto atribuir a figuras como Renan, Temer e muito menos aos irmãos Marinho o mérito de terem colocado o pé na porta e evitado o conluio que já ocupava a antessala do gabinete da Presidenta. Menos tolos do que os do PSDB, eles apenas reagiram a tempo de evitar o pior e quem sabe ainda garantir uma posição melhor no tabuleiro quando o jogo recomeçar.

Diante do que assistimos nos últimos dias, mais do que nunca fica demonstrado o quão importante é a força e a densidade dos movimentos sociais na cena política brasileira. São eles, mais do que os partidos ou as instituições do poder formal que hoje servem de lastro concreto à manutenção da cidadania e dos valores democráticos que foram inscritos na Constituição de 1988.

A muitos de nós foi assustador assistir o judiciário, o legislativo e o executivo se dissolverem na correnteza mal cheirosa da campanha de desestabilização política que foi posta em prática nos últimos meses. Nada parecia parar em pé.

Até que as Margaridas, com indelével legitimidade, vieram nos redimir.

Num país com o abismo social como o Brasil, a legitimidade dos movimentos sociais compostos por mulheres e homens batalhadores decorre, entre outras coisas, do fato de que, em última instância, são eles que têm a vida esfacelada quando os habitantes da casa grande se dão ao luxo de atropelar as regras que não mais lhes convém.

Na condição de economia periférica, com elites historicamente subordinadas a interesses externos, estamos sempre triscando o enredo de “republica bananeira”. E, se pelo menos desta feita o desfecho bananeiro foi evitado, foi pela presença das Margaridas e tantos outros movimentos similares que permaneceram na retaguarda.

Contamos com movimentos sociais fortes. Este é, precisamente, um diferencial importante do Brasil em relação à enorme maioria dos países.

A “trégua”, ofertada a Dilma pelos carcarás de sempre, não deveria, contudo, levar a presidente a conceder ainda mais em seu governo. Dilma, que já estava em dívida com aqueles que votaram nela em outubro de 2014, agora é duplamente devedora dessa pequena, porém, valorosa parcela de seus eleitores que se organizam em meio às dificuldades e agruras da vida e ainda encontram forças para enfrentar de peito aberto os charlatães do andar de cima.

6.7.15

Piketty: a Alemanha nunca pagou

Em entrevista concedida ao jornal alemão 'Die Zeit', o famoso economista Thomas Piketty aponta de forma contundente a posição contraditória da Alemanha de Angela Merkel frente à crise da dívida grega quando comparada com a própria experiência histórica de endividamento e - não pagamento - da Alemanha.(a entrevista original está disponível aqui)





DIE ZEIT: Nós alemães deveríamos ficar felizes porque até o governo francês está alinhado com o dogma alemão de austeridade?
THOMAS PIKETTY: Absolutamente não. Essa não é uma razão para a França, nem para a Alemanha, e nem especialmente para a Europa, para ser feliz. Eu tenho muito mais medo que os conservadores, especialmente na Alemanha, estejam prestes a destruir a Europa e o ideal europeu, tudo por causa de sua chocante ignorância da história.
DIE ZEIT: Mas nós, alemães, já nos reconciliamos com a nossa própria história.
PIKETTY: Mas não quando se trata de pagamento de dívidas! O passado alemão, a este respeito, deveria ter grande significado para os alemães de hoje. Olhe para a história da dívida nacional: Grã-Bretanha, Alemanha e França estiveram todas uma vez na situação da Grécia de hoje - na realidade estavam muito mais endividadas. A primeira lição que podemos tirar da história das dívidas públicas é que não estamos diante de um problema novo. Houve muitas maneiras de pagar as dívidas, e não apenas uma, como Berlim e Paris querem fazer os gregos acreditarem.
DIE ZEIT: Mas eles não deveriam pagar suas dívidas?
PIKETTY: Meu livro narra a história de renda e riqueza, incluindo a das nações. O que me impressionou enquanto eu estava escrevendo é que a Alemanha é realmente um exemplo singular de um país que, ao longo de sua história, nunca pagou a sua dívida externa. Nem após a Primeira, nem após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, tem frequentemente feito outras nações pagarem, tal como depois da Guerra Franco-Prussiana de 1870, quando ela exigiu reparações maciças da França e de fato as recebeu. O Estado francês sofreu por décadas sob essa dívida. A história da dívida pública está cheia de ironia. Ela raramente se aproxima de nossos ideais de ordem e justiça.
DIE ZEIT: Mas, certamente, não podemos tirar a conclusão de que não é possível fazer melhor hoje?
PIKETTY: Quando ouço os alemães dizerem que mantêm uma postura de rigidez moral sobre a dívida e que acreditam fortemente que as dívidas devem ser pagas, eu fico pensando: só pode ser piada! A Alemanha é o país que nunca pagou suas dívidas. Ela não tem legitimidade para ensinar outras nações.
DIE ZEIT: Você está tentando descrever os Estados que não pagaram as suas dívidas como vencedores?
PIKETTY: A Alemanha é precisamente esse Estado. Senão, vejamos: a história nos mostra duas maneiras de um Estado endividado sair da inadimplência. Uma foi demonstrada pelo Império Britânico no século 19 depois de suas guerras caras contra Napoleão. Esse é o método lento, que está agora sendo recomendado à Grécia. O Estado reembolsando seus débitos através de uma rigorosa disciplina orçamentária. Isso funcionou, mas demorou um tempo extremamente longo. Por mais de 100 anos, os britânicos deram entre 2-3 por cento de sua economia para pagar suas dívidas, o que era mais do que eles gastavam com escolas e educação. Isso não precisava ter acontecido, e isso não deveria voltar a acontecer hoje. O segundo método é muito mais rápido. A Alemanha provou isso no século 20. Essencialmente, ele tem três componentes: a inflação, um imposto extraordinário sobre riqueza privada, e um alívio da dívida.
DIE ZEIT: Então você está nos dizendo que o “milagre econômico” Alemão foi baseado no mesmo tipo de alívio de dívida que hoje negamos a Grécia?
PIKETTY: Exatamente. Quando a guerra terminou em 1945, a dívida da Alemanha representava mais de 200% do seu PIB. Dez anos mais tarde, pouco restava: a dívida pública estava abaixo de 20% do PIB. Na mesma época, a França conseguiu uma recuperação semelhante e astuta. Nós nunca teríamos conseguido essas reduções incrivelmente rápidas das dívidas através da disciplina fiscal que nós recomendamos hoje à Grécia. Pelo contrário, ambos os nossos estados empregaram o segundo método, com os três componentes que mencionei, incluindo alívio da dívida. Pense sobre o acordo da dívida de Londres de 1953, pelo qual 60% da dívida externa alemã foi cancelada e a sua dívida interna foi reestruturada.
DIE ZEIT: Isso aconteceu porque as pessoas reconheceram que as altas reparações exigidas da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial foram uma das causas da Segunda Guerra Mundial. Naquela ocasião, queria-se perdoar os pecados da Alemanha!
PIKETTY: Bobagem! Isso não teve nada a ver com maior clareza moral; foi uma decisão política e econômica racional. Eles reconheceram corretamente que, após grandes crises que criaram enormes cargas de dívida, em algum momento as pessoas precisam olhar para o futuro. Não podemos exigir que as novas gerações paguem por décadas pelos erros de seus pais. Os gregos, sem dúvida, cometeram grandes erros. Até 2009, o governo de Atenas forjou sua contabilidade. Mas, apesar disso, a nova geração de gregos não é mais responsável pelos erros de seus anciãos do que foi a geração de jovens alemães nas décadas de 1950 e 1960. Temos de olhar para frente. A Europa foi fundada sobre o perdão de dívidas e investimentos no futuro. Não foi sobre a ideia de penitências infinitas. Nós precisamos nos recordar disso.
DIE ZEIT: O fim da Segunda Guerra Mundial foi um colapso da civilização. A Europa era um campo de morte. Hoje é diferente.
PIKETTY: Negar os paralelos históricos com o período do pós-guerra seria um equívoco. Vamos pensar sobre a crise financeira de 2008/2009. Esta não foi apenas uma crise qualquer: foi a maior crise financeira desde 1929. Assim, a comparação é bastante válida. Isto é igualmente verdade para a economia grega: entre 2009 e 2015, o PIB caiu em 25%. Isto é comparável às recessões na Alemanha e na França entre 1929 e 1935.
DIE ZEIT: Muitos alemães acreditam que os gregos ainda não reconheceram os seus erros e querem persistir em sua via de gastos ilimitados.
PIKETTY: Se começar a chutar Estados para fora, em seguida, a crise de confiança em que a zona do euro se encontra hoje só vai piorar. Os mercados financeiros acionarão imediatamente o próximo país. Este seria o início de um longo período de arrastada agonia, em cuja prevalência corremos o risco de sacrificar o modelo social europeu, a sua democracia, de fato, sua civilização sobre o altar de uma política de austeridade conservadora e irracional.
DIE ZEIT: Você acredita que nós, alemães, não somos suficientemente generosos?
PIKETTY: Do que você está falando? Generosos? Atualmente, a Alemanha está lucrando com a Grécia, uma vez que concede empréstimos com taxas de juros relativamente altas.
DIE ZEIT: Que solução você sugeriria para esta crise?
PIKETTY: Precisamos de uma conferência sobre todas as dívidas da Europa, assim como após a Segunda Guerra Mundial. A reestruturação de toda a dívida, não só na Grécia, mas em vários países europeus, é inevitável. Ainda agora, perdemos seis meses de negociações completamente obscuras com Atenas. A ideia da Comissão Europeia de que a Grécia irá atingir um excedente orçamentário de 4% do PIB e vai pagar de volta as suas dívidas dentro de 30 a 40 anos ainda permanece sobre a mesa. Sugerem que eles vão chegar a um por cento de superávit em 2015, depois a dois por cento em 2016, e a três e meio por cento em 2017. Totalmente ridículo! Isso nunca vai acontecer. No entanto, continuamos a adiar o debate necessário até o dia de São Nunca.
DIE ZEIT: E o que aconteceria após os grandes cortes de dívida?
PIKETTY: Uma nova instituição europeia seria necessária para determinar o déficit orçamentário máximo permitido a fim de evitar o crescimento das dívidas. Poderia ser, por exemplo, um comitê do Parlamento Europeu composto por legisladores dos parlamentos nacionais. Decisões orçamentárias não devem estar fora dos limites dos legislativos. Para minar a democracia europeia, que é o que a Alemanha está fazendo hoje, insistem que os Estados permaneçam na penúria, sujeitos a mecanismos que estão sendo manejados a partir de Berlin – isso é um erro grave.
DIE ZEIT: Seu presidente, François Hollande, fracassou recentemente ao criticar o pacto fiscal.
PIKKETY: Isto não ajuda em nada. Se, nos últimos anos, as decisões na Europa tivessem sido alcançadas de forma mais democrática, a política de austeridade em curso na Europa seria menos rigorosa.
DIE ZEIT: Mas nenhum partido político da França está participando. A soberania nacional é considerada sagrada.
PIKETTY: De fato, em contraste com a França e seus inúmeros crentes da soberania, na Alemanha há muito mais gente envolvida no debate sobre o restabelecimento da democracia europeia. Além do mais, nosso presidente ainda se apresenta como um prisioneiro do fracassado referendo de 2005, sobre a Constituição Europeia, que malogrou na França. François Hollande não compreende que muita coisa mudou por causa da crise financeira. Temos que superar nosso próprio egoísmo nacional.
DIE ZEIT: Que tipo de egoísmo nacional que você enxerga na Alemanha?
PIKETTY: Eu acho que a Alemanha foi muito marcada pela sua reunificação. Havia um grande temor que aquele processo pudesse levar à estagnação econômica. Mas a reunificação acabou por ser um grande sucesso graças a uma rede de segurança social em funcionamento e um setor industrial intacto. Entretanto, a Alemanha tornou-se tão orgulhosa de seu sucesso que ministra lições para todos os outros países. Isto é um tanto infantil. Claro, eu entendo o quão importante o sucesso da reunificação é para a história pessoal da Chanceler Angela Merkel. Mas agora a Alemanha tem de repensar as coisas. Caso contrário, a sua posição a respeito da crise da dívida será um grave perigo para a Europa.
DIE ZEIT: Que conselho você daria para a Chanceler?

PIKETTY: Aqueles que querem insistir na saída da Grécia da zona euro hoje vão acabar no lixo da história. Se a Chanceler quer garantir seu lugar nos livros de história, assim como [Helmut] Kohl fez durante a reunificação, então ela deve buscar uma solução para a questão grega, incluindo uma conferência das dívidas onde possamos começar com uma lousa limpa. Mas com a revisão, a disciplina fiscal deverá ser muito mais forte.

Traduzido do inglês por Marcelo Manzano.

10.10.14

ôpa! cheiro de jabá na cozinha "aux brie" dos institutos de pesquisa

Na matéria do Portal 247 (clique aqui) já foi apontada a suspeita discrepância entre as pesquisas divulgadas ontem (09/set) pelos dois institutos (Datafolha e Ibope).

Entretanto, além do estranhíssimo descompasso entre os resultados apurados por cada instituto nas regiões do país (especialmente no Sul e Sudeste) ante uma extraordinária coincidência dos números nacionais (forte suspeita de conta de chegada), há outro indício de manipulação que me parece tão ou mais grave.

Considerando os números apresentados pelo 247, os dois institutos apontaram que, na região Nordeste, a candidata Dilma Rousseff, cuja votação no 1º turno foi de 59,6%, estaria agora com apenas 59,5% (na média entre Ibope e Datafolha) das intenções de votos (ou 65,5% dos votos válidos), enquanto Aécio Neves, que conquistou apenas 15,4% dos votos nordestinos no 1º turno, teria saltado para 31,5% (ou 34,6% dos votos válidos).

Ou seja, pelo que pretendem nos fazer crer os dois renomados institutos de pesquisa, transcorridos apenas quatro dias do 1º turno - período em que o único fato relevante foi justamente a polêmica em torno dos determinantes do voto nordestino na eleição de domingo (que para FHC seriam resultado da suposta ignorância da população do NE!), Aécio teria conquistado 19,2% das intenções de votos na região, enquanto Dilma teria avançado apenas 6%.

Ora, ora, ora.....


30.9.14

números quadrados no angu das pesquisas do dia 30

Há um conjunto de números divulgados neste dia 30 de setembro pelos dois maiores institutos de pesquisa que trazem à tona algumas discrepâncias no mínimo estranhas, em especial porque estamos a apenas 6 dias das eleições - era de se esperar que a esta altura as pesquisas estivesse mais coerentes entre si.
Segundo os números apresentados pelas pesquisas eleitorais deste dia 30 (Datafolha e Ibope) Dilma se manteve praticamente no mesmo patamar (40% no Datafolha e 39% no Ibope), enquanto Marina caiu (2 pp no Datafolha e 4 pp no Ibope), chegando a 25%, e Aécio oscilou positivamente no Datafolha (2 p.p), mas manteve-se estagnado segundo o Ibope com 19%.
Entretanto, quando se observam os resultados das pesquisas realizadas pelo mesmo Ibope por estados (veja aqui e aqui) e divulgadas também nesse dia 30, percebe-se que as intenções de voto seguiram tendências sensivelmente diferentes daquelas apresentadas no computo nacional. Dilma cresceu sensivelmente em Minas (3 pp), no RJ, (4 pp) e em SP (4 pp), além de um espetacular salto de 10 pp em Tocantins.
Como entender essa combinação de pesquisas? 
Se Dilma continua 'estagnada' próxima dos 40% nas pesquisas nacionais (Datafolha e Ibope) e cresceu nos 3 principais colégios eleitorais para além das oscilações da margem de erro (segundo o Ibope), para que os números sejam compatíveis, Dilma teria que ter caído muito nos demais estados do país. E não há nada que indique que isso esteja ocorrendo, muito pelo contrário.
Além disso, outra divergência intrigante entre as pesquisas, diz respeito às projeções de segundo turno. Enquanto no Datafolha (na qual no 1º turno Dilma tem margem mais estreita do que no Ibope) Dilma abre 8 pp sobre Marina Silva, no Ibope a sua vantagem é de apenas 4pp, configurando um curioso empate técnico.

20.9.14

uma candidatura em duas letras

Quando Karl Marx dissecou o capitalismo, encontrou em seu DNA o princípio sintético que faz seu moinho rodar: a irresistível e imperiosa necessidade de valorização do capital. Nessa sanha, sob a égide da concorrência, tudo e todos são arrebatados pelas pás do capital para que sirvam à sua voracidade infinita. Entretanto, ao mesmo tempo em que o capital depende da exploração da força de trabalho e do uso de meios de produção para dar o seu salto valorativo, seu objetivo maior é fazê-lo reduzindo ao máximo sua dependência dessas bases materiais que lhe dão sentido. Por isso, no limite, cada fração de capital que perambula pelo mundo aprontando das suas está radicalmente impregnada da utópica ideia de prescindir dos percalços e desgostos do mundo material (trabalhadores, máquinas, greves, governos, graxas, escórias, ...) e alcançar sem escalas o Nirvana da grana: lugar onde o dinheiro se transformará diretamente em dinheiro ampliado (D = D’).

Marx também notou que essa etapa olímpica, esse delírio da ambição que a todo capital inocula, ao mesmo tempo em que é o leitmotiv do sistema, ganha concretude e significado real na órbita da circulação financeira, isto é, quando se apresenta na forma de “capital a juros”. Como tal, essa fração “fictícia” da riqueza geral se imiscui na órbita (suja e imoral) da produção, mas sai dela majestosa e imaculada.

No passado, quando essa valorização do capital fictício era rotulada de usura, a sociedade não lhe conferia a melhor reputação e não era raro que banqueiros fossem vistos como sanguessugas ou parasitas sociais. 

Atualmente, porém, a própria complexidade e sofisticação dos processos de reprodução econômica trataram de obscurecer os nexos sórdidos entre as finanças e a produção, polindo os sinais de impureza que antes revelavam as máculas morais e econômicas da acumulação financeira. Agora, pura, limpinha e “reificada”, essa fração do capital desponta como a face nobre, moderna e cosmopolita da máquina de moer a que se chama capitalismo.

Não é à toa, portanto, que o “capital a juros” tenha se tornado o grande amazonas onde deságuam as angústias e inquietudes das almas de ecologistas e de moralistas de todas as cores. O “capital a juros”, por sua aparência “fictícia”, não destrói a Mata Atlântica, não emporcalha o Tietê, não consome energia de Belo Monte, não depende de subsídios do Estado, não entope as avenidas, não disputa terras indígenas, não utiliza agrotóxicos.

A alienação do indivíduo promovida por aquelas mesmas forças disruptivas do capital reduziu a civilização a uma multidão de seres cujas vontades (estimuladas pela prática frenética do consumo) são infinitamente maiores que a paciência e a capacidade de compreensão do mundo real. Tal qual o dinheiro, que busca o salto em abstrato rumo ao mais-dinheiro, o sujeito contemporâneo – à esquerda e à direita - se sente irresistivelmente atraído pela ideia de uma vida onde os fedores da produção material e dos conflitos sociais que dela decorrem não lhe alcancem as narinas e nem lhe atrapalhem o gozo.

Apressadas, desejosas e com a sensibilidade açoitada pela avalanche de informações que inundam o diálogo social, as gentes de hoje querem logo o epílogo, ou melhor, uma sucessão de êxtases, a utópica redução de experiência terrena à reprodução infinita e acelerada do esquema D=D’.

Nessa toada de tiro rápido, de vertigem hedonista e irracional, nada como uma liderança voluntarista (messiânica, por que não?) que com a voz serena das fadas prometa o reencontro com a harmonia perdida e que seja apoiada pelos dinheiros ascéticos do sistema financeiro, longe o suficiente das vergonhas do mundo.

A expressão D = D’ é, portanto, a síntese dessa miragem alienada que toma conta do Brasil nesta eleição de 2014. Em lugar do programa de 250 páginas titubeantes que a candidata Marina Silva acaba de divulgar – e corrigir, e corrigir, ... – seria melhor essa única fórmula áurea. Um salto mágico, insustentável e irracional, mas com inalcançável poder de persuasão.  

Artigo publicado originalmente pelo portal Brasil Debate

28.8.14

a corrupção e o financiamento das campanhas eleitorais

Ser contra a corrupção é mais ou menos como ser a favor da vida, como defender os rios e os peixes. Uma unanimidade tão louvável quanto inócua que, se não é burra, frequentemente vem acompanhada de oportuna preguiça mental.
A imagem clássica da corrupção é aquela cena que tantas vezes se assistiu no telejornal da noite: um político ou funcionário público recebendo um pacotaço de cédulas, flagrado sorridente por uma câmera escondida que lhe expõe os caninos.
Mas infelizmente não é bem assim que a coisa funciona, pois, essa talvez seja apenas a face mais tosca das práticas de privatização do Estado que avançam aqui e em todos os rincões do mundo. Além de meios muito mais sutis, a corrupção, antes de qualquer coisa, é uma decorrência lógica e até previsível da crescente substituição de valores (éticos, morais, religiosos ou tradicionais) por preços.
No jargão do economês, dir-se-ia que se trata da precificação das normas sociais ou da redução da sociabilidade a um exercício de comparação entre custos de transação. Se fulano suborna sicrano por $ 100 e sicrano calcula que o risco de ser pego é de $ 80, então, na ausência de outros valores, não há nenhum motivo racional para imaginar que sicrano não se deixará corromper.
Esse é o drama, simples e tremendamente estúpido – como, aliás, é a crença de que a dita racionalidade instrumental é o melhor guia para erigir um mundo.
Entretanto, como nem todos os valores foram ainda substituídos por cifrões, há certamente muito a se fazer, a começar por isolar, tanto quanto for possível, a órbita das instituições políticas da racionalidade dos mercados. É por isso que o financiamento privado das campanhas deve mesmo ser proibido. Mas é importante ter em mente que esse será um passo importante, mas insuficiente. Pior, se ficar apenas nisso, é possível mesmo que se assista a uma agravamento da corrupção.
Deve-se ter claro que o que corrompe o processo eleitoral e acaba comprometendo a gestão pública é, antes de qualquer coisa, a disseminação do chamado “caixa dois”.
O problema é que, ao contrário do que se costuma imaginar, o caixa dois só existe porque os doadores (agentes do setor privado, como empresários, lobistas, representantes de instituições religiosas ou de classe, entre outros) enxergam nas campanhas eleitorais uma rara oportunidade para usar o dinheiro não declarado que mantêm guardado debaixo do colchão, na conta de um laranja ou de uma empresa offshore.
Patrocinar um deputado ou um governante é mais do que uma ótima estratégia de diversificação do portfólio. Aquela grana escusa e mal ajeitada que perambulava escondida dos filhos e dos fiscais encontra nas eleições uma rara possibilidade de abrir frentes de negócios nos anos vindouros. Se tudo funcionar, i.e, pelo menos um dos candidatos apoiados vencer, o capital retornará ampliado.
Por outro lado, para os políticos ou para os partidos não há grandes vantagens em aceitar o “caixa dois”. É obviamente muito mais interessante receber a doação de forma transparente e declará-la sem riscos aos órgãos de fiscalização. Quem exige o ilícito, o malfeito, é na maior parte das vezes o doador.
Ao político cabe escolher entre aceitar e dar um jeito de esconder ou ficar sem a grana e tentar vencer no gogó e no voto de opinião. Qualquer político com um mínimo de discernimento bem sabe o quanto deve ser incômodo carregar o patrocinador escuso ao longo dos anos de seu mandato, tendo que atender pleitos pouco republicanos e negociar com a tigrada a cada passo que queira dar no futuro.
Portanto, é preciso muito cuidado ao tratar do tema do financiamento das campanhas. Primeiro porque não são propriamente as doações legais que selam os pactos fáusticos entre interesses privados e representantes da vontade coletiva. Segundo porque na ausência do financiamento privado e do dinheiro legal – i.e, do caixa um – é plausível imaginar que os cacifes do submundo ganhem ainda maior importância, conferindo mais poderes aos Mefistófeles de plantão que mais do que nunca estarão a recordar dos acordos de outrora.
Assim, se o que se pretende é evitar que os interesses privados continuem desvirtuando os sentidos da boa política, além de acabar com o financiamento privado, é preciso também limitar e controlar com rigidez e parcimônia o volume de gastos das campanhas. Não se deveria aceitar que magos da publicidade vendam seus serviços intangíveis por fábulas de dinheiro, nem que se lance tanta parafernália midiática nas ruas durante as semanas que antecedem as eleições. Do jeito que a coisa vai, com os gastos correndo soltos e o financiamento atrás, até a famigerada Lei Falcão, dos tempos da ditadura, parecerá mais democrática.
Melhor seria saber apenas qual a proposta de cada partido, que realizações dispõem para demonstrar o acerto de seu programa e, quiçá, qual a biografia dos dirigentes que pleiteiam nossos votos. Nada além disso. Talvez todos utilizando a mesma infraestrutura (custeada pela Justiça Eleitoral), gastando o mesmo montante de recursos e, portanto, suportados por cifras equivalentes, sem financiamento privado, nem caixa um, nem dois e, oxalá, sem o espectro do Mefistófeles a nos alienar o destino.

Artigo publicado originalmente no portal Brasil Debate: http://brasildebate.com.br/a-corrupcao-e-o-financiamento-das-campanhas-eleitorais/#sthash.vs3BENgA.dpuf

17.8.14

a política acertada de elevação do salário mínimo

Ainda durante a IIª Guerra, o economista polonês Michael Kalecki escreveu um notável artigo tratando dos aspectos políticos do pleno emprego. A nós, brasileiros, esse texto foi sempre instigante, mas apenas a titulo de curiosidade intelectual ou de exercício teórico, visto que nossa condição de economia subdesenvolvida fazia-se acompanhar pelo que se chamava de “excedente estrutural de mão de obra”. Na melhor das hipóteses, o pleno emprego era uma miragem no horizonte longínquo.

Nestes anos 2000, contudo, a economia brasileira passou por transformações importantes, particularmente no que diz respeito ao seu mercado de trabalho. Embora não se possa afirmar categoricamente que tenhamos alcançado o “pleno emprego” dos manuais de macroeconomia, não parece descabido dizer que em diversos segmentos do mercado de trabalho a oferta de mão de obra se aproxima do seu limite.
Nessas condições, o septuagenário artigo do Kalecki finalmente parece fazer mais sentido ao sul do equador. De fato, bastou um pouco de rigidez da oferta de trabalho para que a luta ideológica se acirrasse, aquecendo o debate em torno das políticas de emprego praticadas no período recente. A classe capitalista e seus economistas ortodoxos, percebendo seu déficit de poder de barganha, foi ao baú resgatar dogmas do liberalismo para combater as políticas de intervenção do Estado sobre as leis de mercado. Além das requentadas críticas à política fiscal, à carga tributária e outros reme-remes de ocasião, a bola da vez é a política de valorização do salário mínimo.  Ripa daqui, sarrafo dali, tem sido cada vez mais frequente nos defrontarmos com gente graúda malhando o nível atual do salário mínimo – diga-se de passagem, ainda um dos mais baixos da América Latina.

Mas não é de hoje que o salário mínimo incomoda essa gente. Não custa recordar que nos anos 90, auge do neoliberalismo no Brasil, seus arautos diziam que o instituto do salário mínimo era um elemento disfuncional de nosso mercado de trabalho, resquício anacrônico da Era Vargas, que promovia uma série de desequilíbrios em nossa economia e nas contas públicas. Quantas vezes ouvimos dizer que aumentar o salário mínimo provocaria, por um lado, uma elevação do déficit da previdência e, por outro, o crescimento da informalidade e do desemprego?

Ocorre que nos anos 2000 o que se viu foi exatamente o inverso do que propalavam os neoliberais. Desde a posse de Lula em 2003 o salário mínimo vem sendo reajustado acima da inflação, acumulando mais de 70% de ganho real, tornando-se a principal razão da queda da desigualdade registrada no período. Paralelamente, para surpresa dos manuais, as taxas de desemprego caíram a seu mais baixo nível histórico, o déficit da previdência diminuiu e - o que talvez seja o mais surpreendente - a taxa de formalização das relações de trabalho cresceu de modo ininterrupto – mesmo durante a crise de 2009!

Não deixa de ser curioso, portanto, que a despeito desse vasto conjunto de evidências a infantaria liberal esteja mais uma vez empenhada em alvejar o salário mínimo. Ante um repique no déficit da previdência - agora derivado da desoneração da folha de pagamentos, tão aclamada pela classe patronal – voltam-se as bazucas contra os ganhos salariais, como se esses fossem produzir uma catástrofe previdenciária ou fazer explodir o nível de preços no país.

Ora, ora...  Nem uma coisa, nem outra. A quem queira ser honesto em suas projeções sobre a evolução das contas da previdência é forçoso dizer que se deve obrigatoriamente desconsiderar as despesas com benefícios assistenciais, pois estas, por princípio constitucional, devem ser financiadas com recursos tributários (contribuições sociais ou transferências do Orçamento Geral da União). Ou seja, o “déficit” que aparece nas contas não é propriamente da previdência, mas sim uma despesa social meritória que a sociedade brasileira (na Constituição de 1988) achou por bem bancar. Além disso, nas projeções alarmistas que circulam pelo mercado, frequentemente são desconsiderados os efeitos do crescimento da produtividade geral da economia. A depender de como arbitraremos a distribuição do excedente econômico no futuro, teremos plenas condições para gozar nossas aposentadorias por mais tempo, sem prejuízo à saúde das contas do INSS.

Quanto ao temor de que os ganhos salariais estejam pressionando o nível geral de preços, também não é preciso mais do que uma xícara de honestidade intelectual com uma dose de conhecimento da realidade para perceber que a inflação brasileira (que no governo Dilma é a menor desde que Getúlio criou o IBGE!) permanece em nível superior ao desejado fundamentalmente por conta dos choques dos preços dos alimentos e da “indexação” residual que foi ofertada aos donos do capital (aluguéis, concessões de serviços públicos) durante o governo FHC.

Portanto, aos que andam praguejando contra a mais importante política social das últimas décadas, devagar com o andor. Não tem cabimento satanizar os aumentos do salário mínimo, até porque ainda falta muito para chegarmos a um patamar decente.

Para encerrar o assunto, talvez o melhor seja mesmo recorrer ao velho adágio lisboeta: “a palavras loucas ouvidos moucos” e ter em mente os alertas de Kalecki. Essa gente diferenciada, quando premida pelo pleno emprego, perde as estribeiras, parte para cima do Estado e tudo que lembre igualdade social. 

Artigo publicado originalmente no site Brasil Debate
http://brasildebate.com.br/a-politica-acertada-dos-aumentos-no-salario-minimo/

o espectro de jânio quadros

Há um incômodo ranço no ar. Os dias que correm não repetem nem coincidem exatamente com as notas históricas do período conhecido como "4ª República", que vai de 1946 a 1964. Contudo, observadas as tônicas e as ordens dos compassos, é possível encontrar algum paralelismo entre a toada dos últimos 20 anos e aquela que marcou o período democrático que se seguiu ao fim da IIª Guerra .


Senão, vejamos.

No primeiro compasso (Governo Dutra, 1946-1950), tal qual no período FHC (1995-2002), tivemos a marca do liberalismo, do internacionalismo, da ortodoxia econômica e do descompromisso com os interesses populares. Rejeitados pelas urnas, não conseguiram fazer seus sucessores e deram lugar a governos de presidentes carismáticos (Getúlio entre 1951-54, Lula entre 2003-10), apoiados pelas camadas populares, ambíguos na macroeconomia e que deixaram como principais marcas: os aumentos do salário mínimo, as apostas no petróleo nacional (GV criou a Petrobras, Lula descobriu e avançou com o Pré-Sal), o impulso do BNDE(S) (GV foi seu criador e Lula lhe multiplicou por três os fundos para financiamento).

Entre os governos JK e Dilma, outras similitudes são possíveis, a despeito dos diferentes contextos internacionais e dos resultados muito mais expressivos do governo do primeiro. Em ambos, se pode notar o planejamento estatal como eixo estruturante dos respectivos governos (muito mais exitoso no Plano de Metas do que no PAC), além da preocupação com a expansão da infraestrutura ou ainda o vento favorável dos investimentos estrangeiros diretos para cobrir déficits crescentes nas transações correntes. Outro traço que marca os dois períodos é o desconforto da sociedade com as instituições públicas (sistema tributário, sistema político, códigos jurídicos, etc,) e os impasses que encerram.

Finalmente, avançando pelos compassos, o ano eleitoral de 2014 também dá mostras de preocupante similaridade com o ano de 1960. Aqueles impasses institucionais e a descrença na política que deles decorrem abrem um perigoso vazio político. Em sessenta, no campo da situação, o vazio advinha da ausência de um nome de peso para dar curso ao desenvolvimento praticado por GV e JK; em 2014, embora haja uma candidata da situação, (infelizmente) ela não é vista pela maioria do eleitorado como o nome ideal para dar sequência aos projetos iniciados por Lula. Além disso, então como agora, uma pequena oposição orgânica, embora estridente e fortemente apoiada por uma imprensa reacionária e liberal, não dispõe também de um nome forte capaz de polarizar a disputa com o governo de plantão. Em 1960 (quando a eleição era em turno único) decidiram apoiar um aventureiro que talvez pudesse quebrar a a espinha do varguismo. Hoje, com dois turnos, lançam um candidato para cumprir tabela, mas certamente estarão juntos de qualquer outro que tenha a chance de interromper o avanço dos governos petistas.

E não mais que de repente, como que por obra de um Deus Ex-Machina a martelar a história, uma reviravolta trágica alça Marina Silva como um novo Jânio a navegar pelo limbo político.

E muitas são as semelhanças entre os dois:

1º) são personalistas e inorgânicos: não ascenderam politicamente de nenhuma classe ou agrupamento político específico, nem sequer dispunham de uma estrutura partidária robusta ou de um projeto claro de país.
2º) o discurso moralista: Jânio e sua vassourinha sintetizavam a perspectiva de uma classe média desorganizada que se via ameaçada pelo fantasma do estatismo e pelas notícias de corrupção que acompanhavam o trajeto desenvolvimentista. Marina Silva, prescinde da vassoura e com aura de beata se apresenta impoluta, predestinada e messiânica a defender a harmonia idílica do mesozoico.
3) Ambos emergiram do povo: professores de ensino secundário, antíteses da figura do político oligarca que habita o imaginário da opinião média; voluntaristas, destemidos e desconectados das entranhas funcionais que fazem andar a sociedade.

Por tamanha similitude, não há exagero em imaginar os que riscos de crise institucional que se materializaram com Jânio também poderão vir à tona em uma hipotética vitória de Marina Silva. Sem estrutura partidária, sem vínculos orgânicos, sem um projeto de país, Marina Silva representa uma aventura messiânica incapaz de dar conta da complexidade econômica, social e política de um país como o Brasil. Sua vitória seria disruptiva e uma ameaça concreta para o esforço de retomada do desenvolvimento que, a duríssimas penas, temos perseguido nos últimos 12 anos.

colossal pesquisa, tímidas soluções

Nas últimas semanas, as ideias apresentadas por Thomas Piketty em seu livro Capital in the twenty-first century se espraiaram em ritmo viral pelas redes da gente que dialoga sobre os temas econômicos ao redor do mundo. Muitas resenhas foram escritas, críticas pertinentes, louvações justas, a ponto de Paul Krugman ter afirmado que se trata de “um livro que vai mudar muito a maneira como pensamos a sociedade e o modo como fazemos economia“. Oxalá!

Como entender o enorme alvoroço provocado pelo livro de Piketty, esse pacato professor da Paris School of Economics, afinado com a ortodoxia econômica, Phd em Harvard e membro do Partido Socialista Francês?

Certamente uma das razões do entusiasmo decorre do colossal conjunto de dados sobre a desigualdade da riqueza e da renda que foram reunidos no livro e que jamais tinham sido expostos com tal amplitude à luz do dia – apesar de imaginados à sombra e sentidos nas ruas.

As conclusões que Piketty tira dos dados e as recomendações que faz, embora meritórias e certamente necessárias – como a utópica taxação da riqueza ao nível planetário e a defesa do controle de capitais – são, em certa medida, de uma singeleza que chega a ser intrigante. A começar pelo fato de que o autor, tal qual um contabilista de grande envergadura, mira apenas os resultados agregados da distribuição do produto e da renda ao longo da história do capitalismo, passando ao largo do problema central: o caráter disruptivo e incerto da dinâmica da produção e da acumulação. Embora ele reconheça, ao analisar as séries históricas, que o capitalismo só conseguiu sobreviver até aqui (transformado e reformado) graças a profundos e violentos choques exógenos que marcaram o século XX, dá de barato que o capitalismo no século XXI tende a seguir uma trajetória monótona e previsível, à qual, por injusta, ele recomenda reparos.

Não será, pois, por acidente que dois autores que indiscutivelmente revolucionaram o pensamento econômico (Marx e Keynes) são lembrados somente de forma acessória no livro de Piketty. Em sua perspectiva, as crises de reprodução do sistema não aparecem na tela (!) e o que se deve manejar são apenas os critérios de distribuição, de modo a ajustar o viés concentrador, que se revela quase como um fenômeno acidental.

Nesse sentido, seu pensamento estaria mais próximo do direito do que da economia política crítica, pois se debruça fundamentalmente sobre o tema da propriedade e da partição da renda e quase nada tem a dizer sobre o engenho que transforma, aliena e reinventa as forças produtivas sob a égide do capital. Além disso, se por um lado a perspectiva de Piketty se aproxima à de Keynes quando imagina um equilíbrio de longo prazo com baixo dinamismo - e que, portanto, não atende à coletividade (para o primeiro devido à desigualdade e para o segundo devido ao desemprego) - por outro, em muito se distancia dela no que tange ao enfrentamento do problema. Enquanto Keynes vai se dedicar a encontrar meios que alterem ex-ante a dinâmica capitalista para que se alcance uma taxa de crescimento que garanta o pleno emprego, Piketty se debruça apenas sobre os artifícios ex-post que poderiam mitigar a desigualdade.

Mas não é apenas na ausência de diálogo com a teoria econômica crítica que reside a simplicidade do argumento de Piketty. Outro tema crucial de seu livro é a atual impotência dos mecanismos meritocráticos, incapazes de garantir uma distribuição de renda mais equânime e, ao mesmo tempo, permitir a diferenciação dos indivíduos e os estímulos para o progresso. Segundo ele, dada a crescente concentração da riqueza no bolso de pouquíssimas famílias, a saudável competição entre os homens tem sido maculada na origem e, portanto, urge recriar ou instituir mecanismos políticos – tributos – que reestabeleçam condições mais isonômicas para a peleja e assim tracionem a meritocracia, recolocando o capitalismo numa toada mais justa e democrática.

Tudo bem, nada a objetar, muito pelo contrário. Contudo, é ruidosa a ausência de qualquer menção ao fato de que a tributação é sim fundamental, não apenas para reconduzir em condições de igualdade o plantel à arena, mas, essencialmente, porque o produto e a renda são fenômenos sociais, e como tal devem ser distribuídos. A apropriação privada, mesmo que sirva de motor para o progresso e esteja na base da dinâmica que concentra e revoluciona os meios de produção é, desde sempre, um artifício, e não um desfecho mecânico que corresponde ao grau de contribuição de cada indivíduo para a coletividade.

Entre as muitas resenhas do livro de Piketty que estão na praça, apontam-se também outras simplificações problemáticas de sua abordagem - como, por exemplo, o excessivo determinismo econômico (cuja expressão maior é reduzir o problema do capitalismo à persistência de r>g, onde r é a taxa de retorno do capital e g é a taxa de crescimento do produto) e a pouca atenção às especificidades nacionais e históricas dos países que compõem a economia global. Embora não retirem o mérito do grande panorama da desigualdade no mundo do capital, essas críticas são, sem dúvida, pertinentes e reforçam a impressão de que, pelo menos no que tange ao século XXI, o livro lança mão de um aparato metodológico quase naif.

Mas, vá saber...? Não seriam esses aspectos táticos de um Piketty estrategista?

Exaltando os valores republicanos da democracia burguesa (o espectro da Revolução de 1789 ronda as páginas do livro) e sem se desviar do esperanto mercadista, um mérito inegável de Capital in the twenty-fist century é ter conseguido semear no centro do gramado verde do mainstream econômico uma cisma quase existencialista, qual seja: mesmo que tudo funcione comme Il faut, estará tudo dando errado.

Artigo publicado originalmente na revista Carta Capital, edição nº 800, pp 50-51, 16/05/2014.
http://www.unicamp.br/unicamp/clipping/2014/05/19/colossal-pesquisa-timidas-solucoes.

a nova dimensão paulista

Há alguns anos, a NASA divulgou imagens da Terra vista de noite. Belíssimas. Em meio ao azulão profundo, a costa leste dos EUA e a Europa aparecem como constelações vibrantes, espécie de Via Lactea do progresso. Abaixo do equador, porém, esparsos pontos de luz revelam o descompasso do desenvolvimento. As nações periféricas brilham muito menos, também aos olhos dos satélites.

No Brasil, onde por extensas regiões não se enxerga uma única piscadela, apenas na costa sudeste se percebe uma concentração de luzes comparável àquela que se espraia pelo mundo desenvolvido. Num formato que lembra o de uma mão aberta, nota-se que, a partir de uma mancha larga, estendem-se cinco raios, como dedos, cada qual apontando para uma direção do interior. Trata-se do estado de São Paulo: a megalópole sobre o planalto e, sobre as pegadas bandeirantes, os cinco eixos de economia pujante.
E o que nos dizem essas cicatrizes que se avistam do céu?

Contam-nos que as tecnologias da IIª Revolução Industrial (o aço, a eletricidade, o petróleo, o motor a combustão, o automóvel, etc.), que dinamizaram o capitalismo no século XX, também se fizeram presentes por aqui e transformaram profundamente essa região do país. Sobre um tabuleiro fertilizado pelo dinheiro do café, ergueu-se no estado de São Paulo o palco maior da industrialização brasileira.
Efeito reflexo, as forças concêntricas da acumulação capitalista fizeram cristalizar neste mesmo estado os grandes polos do poder contemporâneo: as finanças, os boards das corporações, os órgãos de imprensa, os sindicatos, os partidos políticos.

Quanto aos raios que se estendiam para o interior, indicavam que as punções do desenvolvimento capitalista se desdobraram para algumas importantes regiões do estado, induzidas por investimentos governamentais que trataram de instalar polos industriais em pontos estratégicos do mapa estadual, articulando as fontes de matéria prima aos setores industriais que se irradiavam desde a capital. Foram estes, por exemplo, os casos da região de Campinas, que além de uma refinaria de petróleo (em Paulínia), recebeu diversos centros de tecnologia e pesquisa (CTI, Telebrás, CPQD, Sincrotron, Unicamp, etc.) ou de São José dos Campos, agraciada com outra refinaria e investimentos relacionados à tecnologia aeroespacial (CTA, ITA, Embraer).

No litoral, o porto de Santos, outra resultante do passado cafeeiro, serviu e foi servido pelo vigor da industrialização. Continua sendo o maior porto da América do Sul, responsável pela movimentação de 25% de nosso comércio exterior e por onde passam mais de 1/3 do PIB brasileiro.

Por tudo isso, esse grandioso passado colocou São Paulo como estrela maior do desenvolvimento nacional. Mas o Brasil mudou. A profunda crise que atingiu a economia brasileira nos anos 80 e que resultou em duas décadas de estagnação econômica foi mais ainda uma crise paulista. A outrora locomotiva da nação tem caminhado a taxas mais modestas do que o resto do país. Entre 2002 e 2010, enquanto a taxa média de crescimento do PIB brasileiro foi de 4,1%, ao ano, a de São Paulo ficou em 3,6%. Claro que São Paulo ainda é - e por muito tempo será - o mais importante estado do país. Mas as últimas três décadas revelam que está em curso um processo de desconcentração do parque produtivo nacional, seja por mérito das políticas de desenvolvimento experimentadas em outras regiões do país, seja pela passividade da condução política no estado. De 1985 para 2009 a participação de São Paulo no PIB nacional caiu de 37,6% para 33,4%. Em relação à indústria manufatureira, a queda foi ainda mais abrupta: de 52%, para 42%.

Isso, porém, não deve ofuscar outra tendência importante que se observa na dinâmica interna do estado: enquanto o ritmo de desenvolvimento arrefece na capital, ao interior do estado reserva-se ainda um horizonte com grande potencial de desenvolvimento.

A capital e seu entorno dão claros sinais de fadiga. O gigantismo e a complexidade que caracterizam essa enorme metrópole indicam que talvez se tenha aproximado daquilo que os economistas consideram como uma situação sujeita a “rendimentos decrescentes de escala”. Ou seja, quanto maior é, pior fica.

De fato, há diversos indícios que apontam para o crescente transbordamento econômico em direção ao interior de São Paulo. Hoje, metade da riqueza produzida anualmente no estado de São Paulo é procedente do interior, algo próximo de R$ 700 bilhões e que corresponde a 1/6 do PIB nacional.

Por sua vez, quando nos detemos a observar o interior, notamos que o desenvolvimento econômico que catapultou o estado no último século produziu também lá uma divisão bastante nítida: a banda de cima e a banda de baixo do Rio Tietê. Na de baixo (lado sul),
atravessada pelos eixos da Castelo Branco e da Regis Bitencourt, percebe-se o predomínio de municípios mais pobres, cujas populações têm menor escolaridade e menor expectativa de vida e, portanto, com um padrão de vida mais característico das nações em subdesenvolvidas. Nessa região, prevalecem ainda as atividades agrícolas, com forte crescimento das áreas de reflorestamento, voltadas à produção de celulose e, portanto, não há vetores econômicos que nos autorizem imaginar uma guinada produtiva da região nos próximos anos.

Já na banda de cima (lado norte) se encontram os municípios de maior riqueza, com melhores índices de escolaridade e de longevidade. Os paulistas que ali habitam vivem numa região de grande prosperidade que, em muitos aspectos, lhes permite gozar de um padrão de vida semelhante ao dos países desenvolvidos. E é por essa banda norte do estado que atravessam os três mais reluzentes eixos avistados do satélite: o da Via Dutra (sobre o Vale do Paraíba), o da Anhanguera (passando por Campinas até Ribeirão Preto) e o da Rodovia Washington Luiz, (que se estende até S. José do Rio Preto).

Ciente das particularidades dessa região e de seu grande potencial econômico articulado aos negócios da capital, o governo paulista instituiu em 2008 uma nova unidade territorial denominada “macrometrópole”. Trata-se de um polígono que reúne as regiões metropolitanas de Campinas, de São José dos Campos e a Grande São Paulo. E é certamente desse importante bloco regional que deverão emergir as forças que induziram o novo desenvolvimento que o país espera experimentar nas próximas décadas. Primeiro, porque depois de anos de inanição, há um número considerável de projetos de infraestrutura que deverão impactar fortemente essa área - vale mencionar, por exemplo, a ampliação de Viracopos, que deverá se tornar o maior hub da América Latina, atendendo a 70 milhões de passageiros/ano, ou ainda a construção do Trem de Alta Velocidade, com enorme efeito multiplicador sobre a produtividade regional. Em segundo lugar, porque com o avanço da exploração do pré-sal, estima-se que além do grande impulso econômico sobre a região litorânea (de Peruíbe a Caraguatatuba), deverá haver ainda uma convergência econômica e tecnológica entre esse setor e o aeroespacial, visto que os desafios relacionados à demanda por equipamentos de acesso remoto e controle à distância são comuns a ambos. Por fim, em função dessa região contar com grande concentração de universidades e centros de pesquisa, espera-se que as exigências de inovação que necessariamente decorrerão da retomada do desenvolvimento do país farão convergir nesse polígono empreendimentos capitalistas com elevada capacidade de gerar de valor agregado, devolvendo ao estado de São Paulo o dinamismo que as últimas décadas lhe tiraram.

Artigo publicado originalmente na Revista Meio&Mensagem, edição de maio de 2012.

financeirização, pero no mucho

Nas últimas semanas, por ocasião das comemorações do 1º de maio, passaram pelo Brasil importantes intelectuais europeus que agitaram o debate a respeito do futuro do trabalho no Brasil e no mundo. Ouvir e debater com figuras como as que aqui estiveram (Guy Standing, Pierre Salama, Gérard Duménil, entre outros) é sempre uma ótima oportunidade para sair da zona de conforto e nos obrigarmos a conhecer outras possibilidades de distribuição das peças no tabuleiro. Por mais que as maravilhas online tenham encurtado as distâncias e facilitado enormemente o acesso ao conhecimento, o tete a tete continua fundamental. É também no cafezinho, nas expressões faciais, nos embates entre palestrante e plateia que se revelam as nuances, os interditos, as ênfases que complementam o pensamento e a visão de mundo de cada autor.
Entretanto, experiências como essas também revelam como o olhar do centro, na maioria das vezes, persiste enviesado, contrabandeando para a periferia esquemas de interpretação com ambições totalizantes que são permeados de preconceitos e conclusões inapropriadas.  Não raro a carapuça não nos veste.
Pois me parece que tenha sido esse o caso com as ideias que trouxe na bagagem o ilustre Pierre Salama. Importante crítico da mundialização financeira, Salama esteve no Brasil e na América Latina a fim de difundir seus estudos sobre os impactos da financeirização na vida de nossotros.
O tema da financeirização é, sem dúvida, inescapável a quem queira compreender os diversos aspectos das transformações que se processam na dinâmica de acumulação capitalista ao redor do mundo, à qual nenhuma nação pode escapar. A pressão exercida pela classe dos acionistas em um ambiente econômico global aberto, cada vez mais instável e incerto, encurta dramaticamente o horizonte temporal para os investimentos produtivos, em prejuízo da produção, do emprego e das políticas nacionais. Sob o efeito da ampliação da concorrência intercapitalista em escala global, a exploração do trabalho se intensifica e os casos de regressão social se multiplicam, sem que ninguém saiba ao certo como resistir à dieta do capital.
Salama chegou por aqui imbuído da tarefa de anunciar a nós, brasileiros, que é chegada a 25ª hora: após a crise de 2008, a financeirização estaria finalmente aterrizando em nossas paragens e com ela emerge um conjunto de obstáculos por demais complexos para serem enfrentados pelo Estado Nacional. A prova? A minguada tração macroeconômica que se revela no Brasil desde 2011. Segundo ele, estamos experimentando, com algum atraso, a mesma hipertrofia dos acionistas que há algum tempo empurra a Europa e outras nações desenvolvidas para a estagnação.
Será?
Será que uma suposta mudança de comportamento dos acionistas ou dos CEOs das empresas que atuam no Brasil poderia ser a causa de nosso baixo dinamismo? Não caberia antes perguntar se alguma vez na história do Brasil nosso desenvolvimento esteve associado ao “animal spirit” da classe capitalista? Aliás, rigorosamente, é possível encontrar uma classe capitalista em nosso país?
Até onde sei, o capitalismo brasileiro prescindiu - não por gosto, mas por precisão - do “burguês empreendedor” e foi sempre um artifício gestado e embalado a duras penas pelo Estado Nacional. Assim, não parece muito razoável invocar a perda do que nunca tivemos como fator explicativo dos nossas atuais dificuldades econômicas.
Em realidade, a mediocridade de nossas taxas de investimento e de crescimento do PIB resulta, antes de tudo, de problemas muito mais concretos e evidentes: a manutenção de uma taxa de câmbio valorizada e de uma taxa de juros proibitiva que, em um só tempo, deprime o consumo, inviabiliza o investimento e diminui a envergadura da ação fiscal.
É certo que em defesa dos argumentos de Salama, alguém poderá dizer que esse arranjo macroeconômico que sabota o desenvolvimento brasileiro atual decorre, em última instância, da pressão política exercida pela classe rentista sobre o governo de plantão. É verdade, sem dúvida a causa é essa, mas isso não pode ser interpretado como “financeirização”, nem como uma proeminência do mercado de capitais sobre as outras formas de financiamento da acumulação capitalista. Para bem ou para mal, talvez estejamos ainda em uma etapa anterior do desenvolvimento.
As contradições e disfuncionalidades de nossa macroeconomia são, essencialmente, expressões de um arranjo político cujo centro de gravidade é ainda o patrimonialismo, sustentado sem cerimônia por uma elite econômica que sempre teve grande aversão ao risco capitalista e não abre mão dos ganhos fáceis obtidos por meio de instrumentos jurídicos lastreados em receitas fiscais (títulos da dívida pública; contratos de concessão; contratos de fornecimento e prestação de serviços ao setor público).
A financeirização, portanto, é ainda um aspecto marginal em nosso problemático desenvolvimento, útil para explicar diversas inovações gerenciais que afetam negativamente as relações de trabalho, mas que não se traduz - pelo menos por ora - em causa fundamental de nossa perda de dinamismo.
Muito pelo contrário, o Brasil talvez seja um contraexemplo que deveria servir de inspiração para aqueles que se assustam com o apagamento do Estado Nacional. Na contramão de boa parte do mundo desenvolvido, temos conseguido manejar as políticas públicas com razoável soberania e, só não o fazemos melhor, por conta do arcaísmo da política doméstica, muito mais próxima do Brasil colônia do que das impessoais finanças internacionais do século 21.
Em tempo: nos dias que vão, é sempre prudente guardar alguma distância dos argumentos por demais internacionalistas. É com eles que a extrema esquerda costuma confraternizar com o ultraliberalismo econômico, em prejuízo dos projetos nacionais.

Este artigo foi publicado originalmente no site da Fundação Perseu Abramo, em 19/05/2014
http://novo.fpabramo.org.br/content/financeirizacao-pero-no-mucho

18.8.13

Brisa Certa

Na medida em que vai decantando o processo de catarse social que ganhou as ruas do país em junho passado, restam alguns espasmos de indignação expressos na síntese radical da tática Black Bloc.
Afinal, quem são esses caras?
Analistas de variadas cepas se esforçam para encaixar “os caras” em seus esquemas de interpretação do mundo, frequentemente reservando a eles o recanto das ovelhas negras.
Não parece mesmo fácil decifrar essa moçada que, desde logo, não se considera sequer como um grupo homogêneo ou um ‘movimento’, mas tão somente uma tática efêmera, uma combustão espontânea do tal ‘sentimento difuso de indignação’.
Pois bem, apesar de muito já ter sido dito a respeito, arrisco um tanto mais.
Tomemos emprestado o veio aberto pelo Prof. Belluzzo em artigo recente na Carta Capital(24/06). O dito sentimento de indignação resultaria em última instância de nossa condição de “condenados à liberdade”. Desde que em algum momento da história remota fomos fisgados pelo ideal da transcendência libertária, lutamos e nos acotovelamos obcecados pela miragem da autodeterminação do indivíduo, a mãe das utopias.
Se assim for – e acredito que seja – estamos também condenados a rechaçar toda e qualquer interpretação de nossa realidade que carregue algum traço normativo. Tal como um adolescente frente à autoridade, vivemos uma cruzada secular de rejeição a enredos que de alguma forma resultem na pré-determinação de nossos atos. E é esse precisamente o ethos que caracteriza a esquerda: a crítica radical e a negação das certezas.
Pois é nesse tênue e fugidio veio que navega a intuição dos Black Blocs. Filhos de uma época em que as grandes narrativas já não afloram, de uma cultura que não tem mais tempo, de uma experiência hedonista e utilitária, essa galera prima pelo uso de atalhos e tem pressa de chegar ao cerne: os bancos, os símbolos do alto consumo, a polícia, a mídia, as instituições obstruídas pela norma e pela demagogia.
Claro que não lhes faltam acusações. Dizem alguns que são anarquistas, outros que são fascistas, filhos de uma classe média sem norte, narcisos em busca de sentido, ou apenas consumidores frustrados.
Não creio. Se bem observarmos, nas manifestações desses hereges de nossa época as bandeiras são todas “brisas certas”, como usam dizer. Apontam suas câmeras e marretas aos nódulos desse sistema que tudo devora. E surpreendentemente, ao contrário dos tais coxinhas ou de udenistas de esquerda que, de verde e amarelo, se misturam aos chamamentos da rede Globo, a turba de encapuzados do Black Bloc, caótica ou acéfala, não se voltou contra as instituições que efetivamente representam conquistas sociais, nem tampouco se opuseram aos partidos e governos que enxergam como aliados no processo de transcendência libertária.
Sem postulados, destituídos de normas e cartilhas, não incorrem no erro fratricida que desde sempre fez das facções de esquerda os maiores inimigos das facções de esquerda.
Crítica em estado puro, livre de pretensões iluministas ou teleológicas, a tática Black Bloc é apenas e tão somente esquerda.

Outros artigos interessantes sobre o assunto:
- Vandalismos (Pedro Serrano)
- Black Bloc é a resposta à violência policial (André Takahashi)

29.6.13

mais uma vez, ainda, pelo começo

(esclarecimento necessário: este texto é um auto-plágio de um artigo que publiquei em março de 2004 na revista Caros Amigos. Fiz apenas alguns ajustes pontuais, atualizando as datas e alguns fatos. Infelizmente, tantos anos se passaram e o tema volta a fazer sentido)

Duas ou três semanas de asfalto e vinagre foram suficientes para azedar o sabor de prosperidade econômica que há quase dez anos embalava os brasileiros, o governo e o PT.

Porém, muito mais grave do que as fraturas políticas que a crise traz à tona é que um eventual fracasso do atual governo significará muito mais do que o tropeço de um partido ou de um programa político econômico. Não afetará somente nossa vida daqui por diante, mas marcará drasticamente a nossa vida pretérita, nossos tantos anos de construção de uma alternativa para este país.

Como muitas vezes nos ensina a história, o sentido das coisas, o rumo dos processos sociais e políticos são definidos de frente para trás – de hoje para ontem. São os eventos do presente que magicamente dão sentido às trajetórias e escolhas do passado e essas, por sua vez, só podem ser plenamente compreendidas a partir do seu desfecho. Sem ele, não seriam mais do que eventos fortuitos, largados ao acaso, ao lado de tantos mais.

É como quando damos o primeiro beijo na namorada. Resgatando na memória, identificamos naquela festa da escola, ou naquele olhar no retrovisor, um encanto que só poderia desaguar no grande amor de hoje. Ou também no futebol, quando tabelamos desde o nosso campo de defesa numa triangulação predestinada a encher a rede, num belíssimo gol de placa. Mas, quantos foram as tabelinhas desperdiçadas pelo centroavante fominha? E quantos olhares em quantos retrovisores não passaram de olhares nos retrovisores?

Para que nossa arte, nossa labuta, faça algum sentido, é imprescindível que de algum jeito consigamos conectar o presente a nossas ambições de ontem. Se não para construir o futuro - como gostamos de acreditar - talvez para amalgamar o passado. 

Pois é com isso que o governo atual e a Presidente Dilma estão lidando. Tenhamos participado mais ou menos ativamente da política nos últimos 30 anos, temos que reconhecer que o PT foi o portador da caneta que parecia predestinada a ligar os pontos de nossa história. Os chumbos da ditadura, a luta pelas Diretas-Já, os desenhos do Henfil, a Constituinte do Dr Ulisses, o Lula-lá, o impeachement do Collor, o sufoco do FHC,... todo esse amontoado de vida só comporá um roteiro inteligível se, ao fim, formos capazes de desaguar em algum mar. Aquele leito caudaloso, expressão talvez das duras escarpas que nos acompanharam ao longo do tempo, não deveria terminar assim, absorvido pela areia da costa, empapuçando um mangue que parece infinito.

Sem um mar, não haverá rio, nem córregos, nem nascentes. 

10.10.12

manifesto em defesa da civilização*


Vivemos hoje um período de profunda regressão social nos países ditos desenvolvidos. A crise atual apenas explicita a regressão e a torna mais dramática. Os exemplos multiplicam-se. Em Madri uma jovem de 33 anos, outrora funcionária dos Correios, vasculha o lixo colocado do lado de fora de um supermercado. Também em Girona, na Espanha, diante do mesmo problema a Prefeitura mandou colocar cadeados nas latas de lixo. O objetivo alegado é preservar a saúde das pessoas. Em Atenas, na movimentada Praça Syntagma situada em frente ao Parlamento, Dimitris Christoulas, químico aposentado de 77 anos, atira contra a própria cabeça numa manhã de quarta-feira. Na nota de suicídio ele afirma ser essa a única solução digna possível frente a um Governo que aniquilou todas as chances de uma sobrevivência civilizada. Depois de anos de precários trabalhos temporários o italiano Angelo di Carlo, de 54 anos, ateou fogo a si próprio dentro de um carro estacionado em frente à sede de um órgão público de Bologna.

Em toda zona do euro cresce a prática medieval de anonimamente abandonar bebês dentro de caixas nas portas de hospitais e igrejas. A Inglaterra de Lord Beveridge, um dos inspiradores do Welfare State, vem cortando recorrentemente alguns serviços especializados para idosos e doentes terminais. Cortes substantivos no valor das aposentadorias e pensões constituem uma realidade cada vez mais presente para muitos integrantes da chamada comunidade europeia. Por toda a Europa, museus, teatros, bibliotecas e universidades públicas sofrem cortes sistemáticos em seus orçamentos. Em muitas empresas e órgãos públicos é cada vez mais comum a prática de trabalhar sem receber. Ainda oficialmente empregado é possível, ao menos, manter a esperança de um dia ter seus vencimentos efetivamente pagos. Em pior situação está o desempregado. Grande parte deles são jovens altamente qualificados.

A massa crescente de excluídos não é um fenômeno apenas europeu. O mesmo acontece nos EUA. Ali, mais do que em outros países, a taxa de desemprego tomada isoladamente não sintetiza mais a real situação do mercado de trabalho. A grande maioria daqueles que hoje estão empregados ocupam postos de trabalhos precários e em tempo parcial concentrados no setor de serviços. Grande parte dos postos mais qualificados e de melhor remuneração da indústria de transformação foi destruída pela concorrência chinesa.

Nesse cenário, a classe média vai sendo espremida, a mobilidade social é para baixo e o mercado de trabalho vai ficando cada vez mais polarizado no país das oportunidades. No extremo superior, pouquíssimos executivos bem remunerados que têm sua renda diretamente atrelada ao mercado financeiro. No extremo inferior, uma massa de serviçais pessoais mal pagos sem nenhuma segurança, que vivem uma realidade não muito diferente dos mais de 100 milhões que recebem algum tipo de assistência direta do Estado. O Welfare State, ao invés de se espalhar pelo planeta, encampando as tradicionais hordas de excluídos, encolhe, aumentando a quantidade de deserdados.

Muitos dirão que essa situação será revertida com a suposta volta do crescimento econômico e a retomada do investimento na indústria de transformação nestes países. Não é verdade. É preciso aceitar rapidamente o seguinte fato: no capitalismo, o inexorável progresso tecnológico torna o trabalho redundante. O exponencial aumento da produtividade e da produção industrial é acompanhado pela constante redução da necessidade de trabalhadores diretos. Uma vez excluídos, reincorporam-se – aqueles que o conseguem – como serviçais baratos dentro de um circuito de renda comandado pelos detentores da maior parcela da riqueza disponível. Por isso mesmo, a crescente desigualdade de renda é funcional para explicar a dinâmica desse mercado de trabalho polarizado.

Diante desse quadro, uma pergunta torna-se inevitável: estamos nós, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? E se isso for verdade: quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão?

A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os bens essenciais para as satisfações das necessidades humanas imediatas. Diante dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice, etc. Numa expressão, escassez de bem estar!

Um bem estar que marcou os conhecidos “anos dourados” do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão pós 1929, nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem Estar Social. Os direitos garantidos pelo Estado não deveriam ser apenas individuais, mas também coletivos. Vale dizer: sociais. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o direito à saúde, à previdência, à habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados, milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos outros eram criados.

O Welfare State não pode ser interpretado como uma mera reforma do capitalismo, mas sim como uma grande transformação econômica, social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade. O individuo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. No entanto, as gerações que cresceram sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram por naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de Mal Estar Social!

Essa regressão social começou quando começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 70. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída pela ética da concorrência ou do desempenho. É o seu desempenho individual no mercado que define sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria das pessoas seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por acaso o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não por acaso, grande parte da população espanhola está indignada.

Mesmo em um país como o Brasil, a despeito dos importantes avanços econômicos e sociais recentes, a outrora chamada “dívida social” ainda é enorme e se expressa na precariedade que assola todos os níveis da vida nacional. Não se pode ignorar que esses caminhos tomados nos países centrais terão impactos sob essa jovem democracia que busca, ainda, universalizar os direitos de cidadania estabelecidos nos meados do século passado nas nações desenvolvidas.

Como então acreditar que precisamos escolher entre o caos e austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos do 1% detentor de carteiras de títulos financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à cultura?

As respostas para tais questões não serão encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade.

A civilização precisa ser defendida! As promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a liberdade de se auto-realizar. Algo impensável para o homem que precisa preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material. Isso implica numa selvageria que deveria ficar restrita, por exemplo, a uma alcateia de lobos ferozes. Ao longo dos últimos de 200 anos de história do capitalismo, o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem estar de um só é possível quando os demais à sua volta encontram-se na mesma situação. Caso contrário, a reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização.

*este manifesto é uma iniciativa de um grupo de professores e pensadores do campo das ciências humanas.