6.7.15

Piketty: a Alemanha nunca pagou

Em entrevista concedida ao jornal alemão 'Die Zeit', o famoso economista Thomas Piketty aponta de forma contundente a posição contraditória da Alemanha de Angela Merkel frente à crise da dívida grega quando comparada com a própria experiência histórica de endividamento e - não pagamento - da Alemanha.(a entrevista original está disponível aqui)





DIE ZEIT: Nós alemães deveríamos ficar felizes porque até o governo francês está alinhado com o dogma alemão de austeridade?
THOMAS PIKETTY: Absolutamente não. Essa não é uma razão para a França, nem para a Alemanha, e nem especialmente para a Europa, para ser feliz. Eu tenho muito mais medo que os conservadores, especialmente na Alemanha, estejam prestes a destruir a Europa e o ideal europeu, tudo por causa de sua chocante ignorância da história.
DIE ZEIT: Mas nós, alemães, já nos reconciliamos com a nossa própria história.
PIKETTY: Mas não quando se trata de pagamento de dívidas! O passado alemão, a este respeito, deveria ter grande significado para os alemães de hoje. Olhe para a história da dívida nacional: Grã-Bretanha, Alemanha e França estiveram todas uma vez na situação da Grécia de hoje - na realidade estavam muito mais endividadas. A primeira lição que podemos tirar da história das dívidas públicas é que não estamos diante de um problema novo. Houve muitas maneiras de pagar as dívidas, e não apenas uma, como Berlim e Paris querem fazer os gregos acreditarem.
DIE ZEIT: Mas eles não deveriam pagar suas dívidas?
PIKETTY: Meu livro narra a história de renda e riqueza, incluindo a das nações. O que me impressionou enquanto eu estava escrevendo é que a Alemanha é realmente um exemplo singular de um país que, ao longo de sua história, nunca pagou a sua dívida externa. Nem após a Primeira, nem após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, tem frequentemente feito outras nações pagarem, tal como depois da Guerra Franco-Prussiana de 1870, quando ela exigiu reparações maciças da França e de fato as recebeu. O Estado francês sofreu por décadas sob essa dívida. A história da dívida pública está cheia de ironia. Ela raramente se aproxima de nossos ideais de ordem e justiça.
DIE ZEIT: Mas, certamente, não podemos tirar a conclusão de que não é possível fazer melhor hoje?
PIKETTY: Quando ouço os alemães dizerem que mantêm uma postura de rigidez moral sobre a dívida e que acreditam fortemente que as dívidas devem ser pagas, eu fico pensando: só pode ser piada! A Alemanha é o país que nunca pagou suas dívidas. Ela não tem legitimidade para ensinar outras nações.
DIE ZEIT: Você está tentando descrever os Estados que não pagaram as suas dívidas como vencedores?
PIKETTY: A Alemanha é precisamente esse Estado. Senão, vejamos: a história nos mostra duas maneiras de um Estado endividado sair da inadimplência. Uma foi demonstrada pelo Império Britânico no século 19 depois de suas guerras caras contra Napoleão. Esse é o método lento, que está agora sendo recomendado à Grécia. O Estado reembolsando seus débitos através de uma rigorosa disciplina orçamentária. Isso funcionou, mas demorou um tempo extremamente longo. Por mais de 100 anos, os britânicos deram entre 2-3 por cento de sua economia para pagar suas dívidas, o que era mais do que eles gastavam com escolas e educação. Isso não precisava ter acontecido, e isso não deveria voltar a acontecer hoje. O segundo método é muito mais rápido. A Alemanha provou isso no século 20. Essencialmente, ele tem três componentes: a inflação, um imposto extraordinário sobre riqueza privada, e um alívio da dívida.
DIE ZEIT: Então você está nos dizendo que o “milagre econômico” Alemão foi baseado no mesmo tipo de alívio de dívida que hoje negamos a Grécia?
PIKETTY: Exatamente. Quando a guerra terminou em 1945, a dívida da Alemanha representava mais de 200% do seu PIB. Dez anos mais tarde, pouco restava: a dívida pública estava abaixo de 20% do PIB. Na mesma época, a França conseguiu uma recuperação semelhante e astuta. Nós nunca teríamos conseguido essas reduções incrivelmente rápidas das dívidas através da disciplina fiscal que nós recomendamos hoje à Grécia. Pelo contrário, ambos os nossos estados empregaram o segundo método, com os três componentes que mencionei, incluindo alívio da dívida. Pense sobre o acordo da dívida de Londres de 1953, pelo qual 60% da dívida externa alemã foi cancelada e a sua dívida interna foi reestruturada.
DIE ZEIT: Isso aconteceu porque as pessoas reconheceram que as altas reparações exigidas da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial foram uma das causas da Segunda Guerra Mundial. Naquela ocasião, queria-se perdoar os pecados da Alemanha!
PIKETTY: Bobagem! Isso não teve nada a ver com maior clareza moral; foi uma decisão política e econômica racional. Eles reconheceram corretamente que, após grandes crises que criaram enormes cargas de dívida, em algum momento as pessoas precisam olhar para o futuro. Não podemos exigir que as novas gerações paguem por décadas pelos erros de seus pais. Os gregos, sem dúvida, cometeram grandes erros. Até 2009, o governo de Atenas forjou sua contabilidade. Mas, apesar disso, a nova geração de gregos não é mais responsável pelos erros de seus anciãos do que foi a geração de jovens alemães nas décadas de 1950 e 1960. Temos de olhar para frente. A Europa foi fundada sobre o perdão de dívidas e investimentos no futuro. Não foi sobre a ideia de penitências infinitas. Nós precisamos nos recordar disso.
DIE ZEIT: O fim da Segunda Guerra Mundial foi um colapso da civilização. A Europa era um campo de morte. Hoje é diferente.
PIKETTY: Negar os paralelos históricos com o período do pós-guerra seria um equívoco. Vamos pensar sobre a crise financeira de 2008/2009. Esta não foi apenas uma crise qualquer: foi a maior crise financeira desde 1929. Assim, a comparação é bastante válida. Isto é igualmente verdade para a economia grega: entre 2009 e 2015, o PIB caiu em 25%. Isto é comparável às recessões na Alemanha e na França entre 1929 e 1935.
DIE ZEIT: Muitos alemães acreditam que os gregos ainda não reconheceram os seus erros e querem persistir em sua via de gastos ilimitados.
PIKETTY: Se começar a chutar Estados para fora, em seguida, a crise de confiança em que a zona do euro se encontra hoje só vai piorar. Os mercados financeiros acionarão imediatamente o próximo país. Este seria o início de um longo período de arrastada agonia, em cuja prevalência corremos o risco de sacrificar o modelo social europeu, a sua democracia, de fato, sua civilização sobre o altar de uma política de austeridade conservadora e irracional.
DIE ZEIT: Você acredita que nós, alemães, não somos suficientemente generosos?
PIKETTY: Do que você está falando? Generosos? Atualmente, a Alemanha está lucrando com a Grécia, uma vez que concede empréstimos com taxas de juros relativamente altas.
DIE ZEIT: Que solução você sugeriria para esta crise?
PIKETTY: Precisamos de uma conferência sobre todas as dívidas da Europa, assim como após a Segunda Guerra Mundial. A reestruturação de toda a dívida, não só na Grécia, mas em vários países europeus, é inevitável. Ainda agora, perdemos seis meses de negociações completamente obscuras com Atenas. A ideia da Comissão Europeia de que a Grécia irá atingir um excedente orçamentário de 4% do PIB e vai pagar de volta as suas dívidas dentro de 30 a 40 anos ainda permanece sobre a mesa. Sugerem que eles vão chegar a um por cento de superávit em 2015, depois a dois por cento em 2016, e a três e meio por cento em 2017. Totalmente ridículo! Isso nunca vai acontecer. No entanto, continuamos a adiar o debate necessário até o dia de São Nunca.
DIE ZEIT: E o que aconteceria após os grandes cortes de dívida?
PIKETTY: Uma nova instituição europeia seria necessária para determinar o déficit orçamentário máximo permitido a fim de evitar o crescimento das dívidas. Poderia ser, por exemplo, um comitê do Parlamento Europeu composto por legisladores dos parlamentos nacionais. Decisões orçamentárias não devem estar fora dos limites dos legislativos. Para minar a democracia europeia, que é o que a Alemanha está fazendo hoje, insistem que os Estados permaneçam na penúria, sujeitos a mecanismos que estão sendo manejados a partir de Berlin – isso é um erro grave.
DIE ZEIT: Seu presidente, François Hollande, fracassou recentemente ao criticar o pacto fiscal.
PIKKETY: Isto não ajuda em nada. Se, nos últimos anos, as decisões na Europa tivessem sido alcançadas de forma mais democrática, a política de austeridade em curso na Europa seria menos rigorosa.
DIE ZEIT: Mas nenhum partido político da França está participando. A soberania nacional é considerada sagrada.
PIKETTY: De fato, em contraste com a França e seus inúmeros crentes da soberania, na Alemanha há muito mais gente envolvida no debate sobre o restabelecimento da democracia europeia. Além do mais, nosso presidente ainda se apresenta como um prisioneiro do fracassado referendo de 2005, sobre a Constituição Europeia, que malogrou na França. François Hollande não compreende que muita coisa mudou por causa da crise financeira. Temos que superar nosso próprio egoísmo nacional.
DIE ZEIT: Que tipo de egoísmo nacional que você enxerga na Alemanha?
PIKETTY: Eu acho que a Alemanha foi muito marcada pela sua reunificação. Havia um grande temor que aquele processo pudesse levar à estagnação econômica. Mas a reunificação acabou por ser um grande sucesso graças a uma rede de segurança social em funcionamento e um setor industrial intacto. Entretanto, a Alemanha tornou-se tão orgulhosa de seu sucesso que ministra lições para todos os outros países. Isto é um tanto infantil. Claro, eu entendo o quão importante o sucesso da reunificação é para a história pessoal da Chanceler Angela Merkel. Mas agora a Alemanha tem de repensar as coisas. Caso contrário, a sua posição a respeito da crise da dívida será um grave perigo para a Europa.
DIE ZEIT: Que conselho você daria para a Chanceler?

PIKETTY: Aqueles que querem insistir na saída da Grécia da zona euro hoje vão acabar no lixo da história. Se a Chanceler quer garantir seu lugar nos livros de história, assim como [Helmut] Kohl fez durante a reunificação, então ela deve buscar uma solução para a questão grega, incluindo uma conferência das dívidas onde possamos começar com uma lousa limpa. Mas com a revisão, a disciplina fiscal deverá ser muito mais forte.

Traduzido do inglês por Marcelo Manzano.