10.7.11

yamaga, ainda que fosse apenas pelo aroma

Quem acompanha a mais tempo este blog, deve ter notado que, sob o tema "cinza is beautifull", reúno os posts que tratam de lugares notáveis garimpados no enrosco das grandes cidades.

Pois, ontem, descobri mais um: o Yamaga.

Permitam-me, porém, um preâmbulo, um antepasto.

Vinte anos atrás, tranquei a faculdade e fui com minha namorada - hoje minha companheira e mãe de meus filhos - passar uma temporada em Londres. Sem falar inglês, o primeiro emprego que consegui foi como lavador de cumbuca num restaurante japonês.

Mas não era um restaurante qualquer. Era, talvez, o japonês mais "in" da cidade. A começar pela porta de entrada, sem nenhuma placa ou qualquer indicativo de que se tratava de um restaurante. Apenas uma porta preta que dava acesso ao subsolo de uma também solene loja da Maserati. Para frequentar o lugar, só com a indicação de alguém e reserva prévia. Do lado de dentro, doze mesas apenas, cada qual em sua salinha de tatame. As garçonetes, importadas do Japão, não falavam inglês. Só o gerente conhecia o idioma. Na cozinha, quatro ou cinco japoneses de facas na mão e calçados naqueles tamancos de madeira que se apoiam em duas traves. Ao lado, num beco de 2m², eu, o único ocidental, ante uma pia enorme, abarrotada dos mais variados utensílios de bambu e as infinitas cumbucas.

Era ali que eu passava meus dias, sem precisar de qualquer idioma, apenas gesticulando com a cabeça e sentido os aromas que cruzavam a janela através da qual as pequenas gueixas me passavam as cumbucas. Todos os dias, invariavelmente, chegava à minha janelinha alguma cesta de tempurás com um ou dois enormes camarões empanados, desprezados por algum cliente esnobe ou sem tempo para os prazeres. Pois eram os melhores camarões da terra.

Volto ao dia de ontem, Rua Tomás Gonzaga, bairro da Liberdade. Por indicações de amigos, sempre que estou por lá, vou ao Hinodê ou ao Gombe, dois tradicionais restaurantes japoneses apreciados pelos paulistanos. Mas, ontem, titubeamos e resolvemos nos arriscar por um local desconhecido. Por uma fresta de porta enxergamos um balcão (sushi-bar) que nos chamou a atenção. Era o Yamaga, nº66.

Sentamos, claro, no balcão, de bela e confortável madeira branca. À nossa frente, um japonês esquálido, com sete olhos, quatro braços, dezoito facas, um copo de uísque. Fui lhe pedir o cardápio e tomei um "moça traz". Virei para o lado, em busca da moça, e tomei uma baforada da cozinha.

Direto do hipotálamo me veio a lembrança do restaurante de Londres. Tantos anos depois, tantos japas visitados, me reencontro com aqueles aromas que me traziam as cumbucas.

Entusiasmados, pedimos um "combo" cada um - lá o combo é individual. Enquanto aguardávamos, apreciávamos o ambiente, os nomes de clientes cativos nas garrafas de uísque na prateleira: Sr. Park, Sr. Nakagawa, Sr. Hidetoshi, outro Naka e, acima, no canto esquerdo, Sr. Jacard - ao que me seguiu um frio na espinha.

Do centro de seu pequeno reino, o Sr.Toshiso Nonogushi comandava com poderes absolutos todas as ações da casa: "Pati, limpa mesa 3"; "Roberta, leva Teishoku"; "Pati, pega gelo Chefe". E a Pati: "O Chefe tá vermelho como um camarão". E ele: "Chefe uísque". Isso tudo, sem tirar a mão esquerda da panela de arroz, de onde preparava os bolinhos para depois cobri-los com as fatias de peixe. Aliás, no Yamaga, não são exatamente "fatias". Mais correto seria chamar de pedaços, pois o Sr. Toshiso serve o peixe em bitelos mais grossos, com estranhos cortes na diagonal - feito que só é possível graças à qualidade do peixe. Segundo ele, o segredo está na hora de comprar o peixe ("tem que ser gordo"), tarefa que, evidentemente, cabe apenas a ele.

E de fato, o peixe servido no Yamaga é muito superior ao que se come em outros lugares. Chega a ser intrigante. Como é que uma comida tão simples, com pouquíssimos ingredientes e servida crua, pode variar tanto?

E o tempurá? Ahhh, o tempurá.....

29.6.11

a pública: a urtiga

Porreta a iniciativa das jornalistas Marina Amaral, Natália Viana e Tatiana Merlino (todas ex-Caros Amigos) que botaram no ar a página "A Pública", nada menos que uma promissora "Agência de Reportagens e Jornalismo Investigativo".

De saída, 50 traulitada produzidas a partir de documentos do Wikileaks que estão sendo distribuídas a cada duas horas ao longo dessa semana.

E o engraçado da história é que a trupe dos jornalões, que andava dizendo que a internet, os blogs e sites, nada mais eram do que caixa de ressonância da velha mídia, está agora com o olho pregado na Pública esperando o próximo drops, sabor pólvora.

Pois, vamos logo a elas. O link já está devidamente posicionado ali do lado direito, na Redondeza.

Parabéns muchachas!

ET: enquanto isso, no site do Estadão, jornalão por excelência, o que resta é a produção de um parrudo factoide. Aproveitando-se da aura suspeita que cerca o prefeito de Campinas, o jornal estampa em letras garrafais um "grampo" que trataria de um suposto lobby do Dr. Hélio com o marketeiro de Dilma em favor de uma empresa chinesa. Ouça aqui o áudio, disponibilizado pelo mesmo jornal que produziu o factoide, para perceber como não há absolutamente nada de ilegal, irregular ou anti-ético na conversa dos dois. Aliás, o Prefeito deixa claro que se trata de uma decisão de investimento já tomada pela empresa, em favor de Campinas, e que se trata de uma oportunidade - legítima e corriqueira - da Presidenta Dilma, que estaria na cidade, participar do anúncio oficial do investimento da multinacional.

Lamentável! De minha perspectiva, a ilegalidade do episódio está apenas e tão somente na divulgação de uma gravação que foi produzida com autorização da justiça para investigar suspeitas de corrupção na prefeitura de Campinas e que não tem qualquer vínculo com o teor da conversa sobre a qual montaram o factoide. Seria ótimo que o Ministério Público Paulista, responsável pelas investigações em Campinas, se comprometesse, primeiro, a apurar como o material vazou de seus processos e, segundo, a defender o interesse do público ante a patente e irresponsável má fé do "furo" jornalístico desse carcomido jornalão.

25.6.11

a moratória que revigora

Enquanto o clima de tensão pré-colapso se espraia entre os europeus, a prestigiosa e conservadora revista The Economist publicou dias atrás em seu site uma nota acabrunhada sobre um estudo no qual são analisados vários casos de moratória de dívidas soberanas (os ditos defaults). Comparando diferentes experiências desde 1999, o tal estudo aponta que, ao contrario do que costumam vaticinar os 'analista do mercado', o desempenho econômico dos países que declararam moratória melhora sensivelmente no período pós-calote.


De fato, como se observa no gráfico acima, com exceção de economias cronicamente inviáveis (Belize, Camarões ou Granada), em todas as demais as taxas de crescimento do PIB pós-calote  (em azul escuro) dão um salto quando comparadas às taxas pré-calote (em azul claro).

Veja-se, por exemplo, como melhorou a vida de nossos vizinhos uruguaios: nos anos que antecederam ao default, amargavam uma recessão que se aproximava de -3% do PIB; declarada a moratória, o PIB só faz crescer, a uma taxa quase chinesa, que hoje já é superior a 8% ao ano.

Mas os números divulgados pela The Economist não revelam apenas esse caráter virtuoso das moratórias. Deixam claro também que são justamente as baixas taxas de crescimento do PIB que muitas vezes levam os países à situação de insolvência. Dessa perspectiva, a decisão de não pagar é o último ato de uma tragédia anunciada e representa apenas o momento de acerto de contas com o passado. Baixado o pano, o país estará livre para a retomada do crescimento em uma nova base, com menor endividamento e menores riscos.

Curiosamente, não li nem ouvi nossos mídia-ligeiras tocarem no assunto.
Pois, market-friendly que são, deveriam estar mais atentos ao jogo.Tais números apenas atestam o que há muito sabemos: trata-se de capitalismo em estado bruto - capital en su tinta! Moral à parte, uma vez declarado o default, a nação ex-caloteira é rapidamente perdoada e abre-se terra virgem a novas rodadas de acumulação capitalista. O apetite dos homens se encarrega do resto.

24.6.11

mas que falta alguma coisa, falta

O historiador István Jancsó deixou um belo depoimento biográfico que foi publicado por seus alunos um mês após sua morte, em março de 2010 (Um historiador do Brasil: István Jancsó. MOREL, M. et alli. São paulo: Ed Hucitec, 2010).

Lá, quando falava da "nação como projeto", apontava para uma lacuna de nossa historiografia que me parece das mais relevantes. Segundo o Prof. István, quando se trata de pensar os fundamentos da nação brasileira, "as pessoas gostam de iluminar terrenos já iluminados". Nos acomodamos às análises dos chamados "intérpretes do Brasil" (Caio Prado, Sergio Buarque e Gilberto Freyre) ou nos apoiamos na vigorosa e influente tese de Fernando Novais - que trata da crise do sistema colonial - mas pouco avançamos na reflexão sobre processos históricos mais recentes e suas relações com o Brasil contemporâneo. No esforço de construir uma genealogia da identidade nacional, dar-se-ia excessivo peso a nosso passado colonial e muito pouca relevância à dinâmica histórica de nosso período republicano.

De fato, embora eu não seja um estudioso do assunto, me arrisco a dizer que a complexidade social brasileira, em suas várias dimensões (cultural, política, econômica), não parece caber apenas em nossa matriz colonial.

Não há como discordar que nosso sentido de nação é fraco, quase uma abstração, e que está em nossa herança colonial muitas das razões desse nosso traço. Mas, por exemplo, o quanto disso não foi amplificado por um mar de imigrantes - que se tornaram gente após a urbanização - e que guardam muito pouco sentido de nacionalidade? Costumo perguntar a meus alunos - do interior de São Paulo - quantos tem sobrenomes estrangeiros. Invariavelmente, mais de 95% tem lá o seu avô italiano, japonês ou espanhol. E qual a relação dessa gente com o Brasil colônia? Em que medida são brasileiros? Ou, por outro lado, quais os nexos entre suas experiências e expectativas de vida e os rumos da "nação brasileira"?

Não conheço em profundidade a bibliografia a respeito. Talvez exista gente nova produzindo estudos que avancem nesse esforço de interpretação do Brasil contemporâneo. Mas, creio que o Prof. István tocou em um problema real e grave de nossa historiografia. Seria muito bom que novos intérpretes viessem a tona (se é que isso ainda é possível) e pudéssemos transitar por outras narrativas, que não aquelas produzidas em um país predominantemente agrário e que resultava da visão de mundo de gente oriunda da classe dominante.

8.6.11

celular zen

E não é que, circulando por esse mundo virtual, me deparo com um post escrito por meu pai, Nivaldo Manzano, em blog alheio, indicando essa linda peça publicitária criada, no Japão, para o lançamento de um celular de madeira.

Vejam o vídeo abaixo, uma proeza tipicamente oriental. Em meio a uma floresta tranquila, num xilofone pra lá de comprido, uma bolinha de maneira, movida apenas pela gravidade e com o tempo ditado pela inclinação e comprimento de cada tecla-degrau, executa a singela melodia de "jesus, alegria dos homens" de Bach.

7.6.11

e quantos dias trabalhamos para o rentismo?

É impressionante como os mídia-ligeira se derretem pelo tema "dias de trabalho necessários para pagar impostos". Em 25 de maio passado, se dedicaram com afinco a divulgar uma campanha patrocinada pelas Associações Comerciais, na qual alguns postos de gasolina se dispuseram a vender combustíveis descontando o valor dos impostos do preço final do produto. Segundo os patrocinadores do ato, tratava-se de uma estratégia para chamar a atenção do público sobre o peso da carga tributária sobre a renda nacional (PIB). Supostamente, a data escolhida demarcava o tanto de dias de trabalho que, em média, nós brasileiros dedicamos a custear o setor público.

Mas se esqueceram de dizer a verdade - o que é deplorável e muito grave, considerando que o assunto é da maior relevância e que, ao contrário do que repercutem os mídia-ligeira, os números trombeteados estão muito distantes da realidade.

Para analisar o peso do setor público sobre a economia deveriam retirar da conta todas aquelas despesas que correspondem a transferências de recursos que apenas são intermediados pelo setor estatal. 

Como se pode observar na figura abaixo (baseada em estudo do IPEA), todas as fatias em tons de azul correspondem a pagamentos realizados pelos órgãos públicos que se destinam a bolsos privados (15,3%). É o caso, por exemplo, das aposentadorias do setor privado (6,9%), das aposentadorias do setor público (4,7%), do FGTS, do Bolsa Família, Subsídios, etc. Não faz o menor sentido dizer que trabalhamos para pagar estas despesas sem considerar que, a depender da nossa condição social (aposentado, desempregado, invalido, etc), receberemos esses recursos de volta.    


Porém, além destas transferências diretas, há uma outra importante porção de recursos públicos que se destina a custear os encargos da dívida pública (os famigerados Juros) que, em 2008, representaram 5,6% do PIB ou 21 dias de trabalho. E, é bom lembrar, que esses 21 dias de suor de cada um de nós destinam-se a manter cheios os bolsos dos 0,5% dos brasileiros que estão sentados no topo da pirâmide - estima-se que cada um desses abençoados recebam aproximadamente R$ 12 mil por mês a título de remuneração dos títulos públicos que mantém em suas carteiras.

Ou seja, retirando tudo que se refere apenas a movimentação de dinheiro entre bolsos privados (transferências diretas + juros), o que resta efetivamente para custear as despesas públicas corresponde apenas a 14,9% do PIB (ou 54 dias de trabalho). É tão somente com esses recursos - chamados de Carga Tributária Líquida - que os três níveis de governo pagam as despesas do SUS, das universidades e escolas públicas, da justiça, da segurança pública, das forças armadas, do legislativo, dos portos, das estradas, do metrô, e tudo mais. 

Portanto, se tivessem algum compromisso com a verdade ou um mínimo de responsabilidade com o país, os mídia-ligeira deveriam fazer o seu carnaval com as Associações Comerciais lá pelo dia 23 de fevereiro e podiam inclusive mostrar tudo que se faz com esse tantinho de dias que se destina a custear o nosso setor estatal.

Em suma: de cada 2,5 dias que suamos a camisa para sustentar o governo, suamos um outro para sustentar um punhado de endinheirados que flanam nas asas dos títulos públicos. 
Com o que será que devemos nos indignar?

PS: para uma comparação internacional, veja o documento do IPEA clicando aqui.                    

3.6.11

sobram razões para a saída de palocci

No início de 2004, quando Lula completava seu primeiro ano de governo, escrevi para o Correio da revista Caros Amigos um artigo que apontava para a excessiva e inaceitável ortodoxia econômica capitaneada pelo então todo poderoso Ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Brinquei que caminhávamos para uma situação inusitada - que chamei de o Péssimo de Pareto - na qual nada mais podia piorar sem que alguém fosse beneficiado (ou seja, o Ministro havia maximizado as possibilidades de piora, algo que nem o mais tarado economista ousara pensar).

Pois não é que o renitente Palocci continua encravado no seio dos mandatos petistas, como uma cunha  a garantir os interesses do rentismo e do mercadismo nas instâncias decisórias do país. Se resta algo de ideologia de esquerda na coalizão governista, Palocci deveria ser sacado do governo de imediato, não apenas pelos desvios de sua estratégia de alavancagem pecuniária, mas principalmente pelas inúmeras demonstrações de conservadorismo econômico, que tanto prejudicam e sabotam a rara oportunidade de um governo que navega entre o desenvolvimentismo e o progresso social.

Aos que duvidam ou não se recordam das ações de Palocci na defesa dos interesses rentistas, segue uma lista das mais notáveis:

1. Lutou politicamente para ampliar e tornar definitiva a DRU (Desvinculação das Receitas da União), com o que pretendia ter a liberdade para utilizar os recursos da Seguridade Social para pagamento de despesas financeiras (juros)

2. Foi um militante convicto da autonomia do Banco Central, tese que alimenta o sonho liberal e que em última instância significa transferir o coração da política econômica a uma instituição apartada da política, sobre a qual, portanto, a sociedade não tem qualquer ascendência.

3. Lutou para criar uma lei que obrigasse o governo a alcançar um déficit nominal próximo de zero, ou seja, seria sempre necessário garantir um superávit primário (saldo fiscal antes das despesas financeiras) suficientemente elevado para arcar com os encargos financeiros da dívida pública.

4. Enquanto esteve no governo Lula, conduziu os bancos públicos tal qual bancos privados, abrindo mão do enorme potencial de indução que têm sobre os setores produtivos e de um importante instrumento de regulação indireta dos seus concorrentes no mercado bancário.

Por outro lado, sua saída do governo Lula, creditada ao episódio do extrato do caseiro, alterou sensivelmente a condução macroeconômicas, produzindo resultados bastante positivos para o país: queda da taxa selic; redução do superávit primário; elevação do patamar de crescimento do PIB; aumento das reservas internacionais; redução das taxas de desemprego; crescimento da participação dos bancos públicos no mercado bancário; queda da TJLP para até 4,5% a.a.; duplicação das operações de crédito do BNDES; retomada dos investimentos em infraestrutura (PAC I e II); entre outras mais.

Enfim, o matreiro ex-prefeito de Ribeirão Preto arrasta consigo um caminhão de motivos que justificam o seu expurgo. A seu favor, vende a idéia de que é ele quem faz a ponte com a mão invisível do mercado, um poder que ninguém vê e nem sabe o quanto é forte, mas que segundo seus amigos é fundamental para garantir a governabilidade. 

Às favas! Pura conversa. O vigor de Lula no pós-mensalão (sem o Palocci) e a vitória de Dilma num ambiente de absoluta hostilidade financiada pelos mercadistas parece demonstrar que essa gente não manda tanto quanto costumam alardear seus porta-vozes.

Já vai tarde.

29.5.11

jovem pra quê?



Na última sexta, estive no Fórum Social do ABCD, participando de um debate sobre o tema "Juventude e Trabalho". Tema difícil, afinal, mesmo nas nações ditas desenvolvidas, o desemprego juvenil é extremamente elevado e a falta de perspectiva para os jovens tem provocado movimentos de contestação bastante virulentos que se espraiam pela Europa (como o grupo denominado "jovens sem futuro" que, surgido na França, inspirou o movimento M15 que toma conta das praças da Espanha).

O que dizer aos jovens? Que mundo temos a oferecer àqueles que chegam cheios de vontade e energia à vida adulta?

Em tese, seria desejável que conseguíssemos postergar a entrada dos jovens no mercado de trabalho. Primeiro, porque não há razão para lançar um indivíduo em sua plenitude vital e criativa às linhas de montagem, às aborrecidas tarefas de escritórios ou mesmo às responsabilidades e preocupações da vida profissional. Segundo, porque no capitalismo, para bem ou para mal, há inexorável redução da necessidade de trabalho vivo e, consequentemente, eliminação de empregos. Se assim é, parece razoável que os cada vez mais escassos postos de trabalho sejam ocupados por trabalhadores maduros, mais necessitados, com maiores obrigações financeiras, etc.

Porém, pergunte aos jovens se gostam da idéia. Tirante um ou outro mais cuca fresca, os jovens em geral são ávidos para reduzir sua dependência em relação à família e, mais do que isto, muitos vivem contando os dias para terminar a intragável escola e cair na vida. E o trabalho, um emprego qualquer que seja, de entregador de pizza ou de atendente de telemarketing, é o caminho mais curto a ser seguido.

O que fazer? Como resolver esse dilema tão característico de nosso tempo?

Claro que não tenho resposta a esse assunto e desconfio que a sociedade contemporânea levará ainda um tanto de tempo lidando com o problema. Contudo, uma coisa me parece imprescindível. Não será possível manter a juventude fora do mundo do trabalho sem que se ofereça uma alternativa concreta para a qual possa canalizar o impulso fáustico (vontade de potência e sede de sentido) que, com maior ou menor intensidade, habita o espírito de quem acaba de virar gente. É preciso, portanto, reinventar o mundo do não-trabalho ou do pré-trabalho. O modelo de escola que aí está já há muito que não serve, mas apesar de muito se falar a respeito, pouco - ou quase nada - se tem conseguido mudar. Cada vez mais as escolas se configuram como um fardo e repaginar a velha e tradicional escola só faz aumentar a distância para alguma solução.

Enfim, tal como concluí minha participação no Fórum, acho que a temática "Trabalho e Juventude" talvez seja prematura. Deve ser precedida de outra reflexão: quem são os jovens de hoje? Para depois se avançar sobre qual a educação que cabe a essa juventude. Só então fará sentido falar em "postergação" do mundo do trabalho.

PS: E sobre a reinvenção da escola, tema que conheço pouco, tenho apenas um palpite a dar. Creio que é preciso trilhar o caminho da educação com sentido. A essa geração plasmada na velocidade, na busca rápida pelo satisfação, na relação utilitária com o mundo, é urgente tornar a educação um fim em si mesma, algo que tenha sentido per se, e que, portanto, não se configure apenas como um meio para conquistas futuras - como passar no vestibular ou se preparar para uma profissão promissora.
E, nesse sentido, por estranho que possa parecer à primeira vista, creio que são as escolas técnicas que mais se aproximam dessa proposta. Como são obrigadas a focar o ensino em alguma especialização do mundo do trabalho, permanecem mais coladas a aspectos concretos do aprendizado, resultando numa experiência mais carregada de sentido e que, por isso, permite um avanço maior inclusive nas disciplinas mais etéreas.

24.5.11

um debate oportuno

Nada como um catedrático, autor de gramáticas, fundador do Museu da Língua Portuguesa e, portanto, autoridade inquestionável sobre o assunto, para deixar claro os aspectos desconsiderados pelos doutos que, ignorantes e banhados em naftalina, saem por aí clamando pela "norma culta", como se a questão se resumisse a um debate jacobino.

É sintomático que uma polêmica como essa tenha surgido alguns dias após o episódio da "gente diferenciada". Plasmam-se no mesmo caldo de cultura, de uma classe dominante que vira e mexe se espanta com os novos bárbaros que emergem dos buracos de metrô, que consomem de maneira frenética ou que "assassinam" a 'norma culta' a três por quatro.

Para surpresa dessa gente reacionária, do jeito que a coisa vai, acabaremos falando como os franceses, que, como ensina o Prof. Ataliba, não pronunciam o "s" há séculos e que, a despeito do desvio, continuam encantando a trupe dos iguais.

10.5.11

éh...., me passou


É bastante conhecida a expressão de Sergio Buarque de Holanda que, no livro "Visões do Paraíso", chamou de "procissão de milagres" a ocorrência de sucessivos ciclos econômicos que marcaram a história de nosso país.

Recentemente, tratei desse tema em sala de aula.

Dias depois, ao aplicar uma prova e questionar os alunos sobre os determinantes de nossa industrialização, um inspirado aluno se sai com uma tirada inusitada, nem de todo equivocada:

a causa da industrialização? "o vácuo de milagres"

2.5.11

identidades sociais e ressentimento psicológico

Nesta palestra de Maria Rita Kehl (copiada em 4 videos no youtube - clique abaixo) uma interessante perspectiva do significado do "ressentimento" na psique da sociedade contemporânea. Mais interessante ainda, porque a conhecida psicanalista e professora da PUC-SP parte da interpretação do indivíduo - portanto, uma abordagem clínica - para chegar a uma interpretação das "identidades sociais" em nossa época, e, mais do que isso, de alguns traços constitutivos da sociedade brasileira.

A palestra, que fez parte do programa Café Filosófico (CPFL/Cultura), resulta de um livro escrito pela psicanalista, denominado simplesmente "Ressentimento" (Editora Casa do Psicólogo, 2004), onde ela avança com muita originalidade sobre o significado de certas máculas em nossa memória social (como a escravidão e a ditadura militar) como constitutivas do imaginário da política brasileira. Infelizmente, o livro está esgotado, mas o vídeo da palestra serve bem para apresentar os argumento fundamentais da autora.

18.4.11

a vida é sonho

Nasça o homem sabendo que
Todo esse império deve ser por ele 
Conquistado ou perdido.

A frase, de Calderon de La Barca, da peça "A Vida é Sonho", serve bem ao excelente artigo do indignado Rubens Ricúpero, publicado ontem na Folha, no qual ele manifesta sua perplexidade não só com a promiscuidade dos agentes econômicos que levaram países inteiros à bancarrota, mas principalmente com a "ausência de indignação moral" de todos, que continuam tocando a vida como se nada tivesse acontecido, assistindo ao desmonte das instituições do bem estar social, como se fosse um desígnio de deus.

12.4.11

excelente artigo de delfim netto

Publicado originalmente no jornal Valor, do dia 12/04/2011

Custo/benefício e legítima defesa
Na organização do universo, Deus foi muito duro com os "cientistas sociais", dentre os quais se destacam os economistas. Para benefício desses últimos, entretanto, construiu um "homem" que age com racionalidade limitada num espaço permanentemente preenchido pela incerteza. Para superá-la abriga-se na imitação e nos costumes. Com um legítimo processo de abstração, esquecemos as expressões "limitada" e a "incerteza" e construímos uma hipótese poderosa: o homem age a partir de um cálculo racional absoluto, obedece a incentivos, procura maximizar os seus benefícios e não tem relação com outros homens. Como já suspeitava (numa nota de rodapé) o ilustre Thomas Robert Malthus (1766-1834), isso abria espaço para entendê-lo aplicando o cálculo diferencial criado por Newton (1642-1727).
E não deu outra! O conhecimento da economia avançou dramaticamente explorando aquela hipótese, até assumir o respeitável grau de "rainha" das ciências sociais. A "ciência" criada por Adam Smith exagerou: predou primeiro a psicologia e depois exerceu seu imperialismo sobre a antropologia, a arqueologia, o direito, a geografia, a história, a sociologia e a política! Enquanto isso ela mesma estava sendo predada pela bela e irresistível matemática! Foi um porre que durou pelo menos um século e meio. Terminou quando exagerou na formulação do "equilíbrio geral" num espaço topológico. Isso deu nascimento a uma revisão da hipótese básica. Redirecionou a observação e o estudo sobre a realidade em que se forma o comportamento do agente econômico, absorvendo e reintegrando o conhecimento das ciências sociais que havia predado.
Não há ciência capaz de recomendar ou não a liberdade de capitais
Nada é mais indicador desse movimento, renovador, do que está acontecendo, por exemplo, com relação à liberdade de capitais. No acordo de Bretton Woods (depois de uma penosa e longa discussão teórica) ela praticamente foi interditada; foi construída lentamente depois que o "gold standard" foi definitivamente destruído pela desvalorização do dólar com relação ao ouro no início dos anos 70 e foi consagrada quando o poder político nos EUA passou, de novo, às mãos do sistema financeiro (como acontecera antes de 1929). Iniciou-se na década dos 80 do século passado, a desmontagem da regulação construída nos anos 30. É um fato interessante que no Consenso de Washington, nos anos 80 do mesmo século, apesar da insistência do FMI, ela nunca foi reconhecida.
Agora, em menos de duas semanas, o FMI modificou a sua posição. Admite que em circunstâncias específicas o seu controle pode ser uma das "ferramentas" da política econômica dos países que estão sofrendo com a supervalorização das suas moedas. Esses, de fato não devem assistir passivamente à erosão de sua base industrial sujeita à competição desleal de países mais "espertos". A resposta imediata veio do organizado e poderosíssimo "lobby" financeiro, o "think-tank" Institute of International Finance, de Washington, financiado pelo sistema financeiro internacional, pela boca do seu economista-chefe, o sr. Phillips Suttle. Referindo-se diretamente ao real nos ensinou que sua valorização está associada ao desempenho e às perspectivas positivas da economia brasileira (o que é uma premissa verdadeira) e que, portanto, deveria ser vista com a maior naturalidade. Logo, admitir e lidar com essa realidade seria um instrumento mais útil do que a imposição de controles sobre o movimento de capitais (o que, infelizmente, é uma conclusão que não decorre da premissa).
O que é evidente nessa discussão? Que ninguém dispõe de uma "teoria científica" para recomendar ou não a liberdade de capitais. Além do mais, nenhuma pesquisa empírica feita com métodos estatísticos robustos pode resolvê-la. Trata-se, na mais benigna das hipóteses, de uma recomendação "normativa" que pode ou não ser útil, mas que, evidentemente, é contaminada por interesses. É uma questão cuja resposta depende das circunstâncias internas e externas de cada país. Dizer, como disse o sr. Suttle (e dizem alguns de nossos melhores economistas), que deixar o câmbio flutuar "naturalmente" é a melhor solução para nosso problema, não tem maior valor "científico". É apenas uma opinião, como todas as outras (inclusive a minha), ditada por diferentes visões do mundo. Afinal, deveria ser óbvio que a "liberdade de movimento de capitais" não está escrita nas "leis naturais" imutáveis da organização do universo.
Parece difícil de entender como ainda não tenhamos internalizado em nossas consciências:
1º) que a macroeconomia (inclusive seus mais recentes modelos) tinha muito pouca coisa a dizer sobre como funciona, de verdade, a economia real. Ela também é mais "normativa" (isto é, expressa mais a vontade de como o sistema deveria funcionar do que como ele funciona) do que "científica" e;
2º) que o aparato econométrico que às vezes aparentemente a sustenta (a "calibração") é terrivelmente deficiente para levar a qualquer conclusão segura. Aliás não deveria haver surpresa: a ciência só avança quando falha!
Ao contrário, portanto, da ideia que as políticas macroprudenciais são uma volta ao passado, elas simplesmente indicam nossa perplexidade com a tragédia a que levou a aparente sofisticação financeira. O momento não é de afirmações apodíticas, apoiadas numa ciência que não existe, mas de avaliação cuidadosa da relação custo/benefício, no curto e no longo prazo, das medidas que estamos tomando em legítima defesa...
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento

5.4.11

a perda de um grande historiador do pensamento econômico

Em 26 de fevereiro passado, morreu o pensador, sociólogo e economista canadense Gilles Dostaler que, entre outras destacadas obras, escreveu a que pode ser considerada a melhor biografia de J.M Keynes (Keynes and his battles) e que soube reconhecer no pensamento de Keynes a singularidade de suas idéias, sem reduzi-lo ou mistificá-lo.
 Reproduzo abaixo um artigo escrito em sua homenagem, que traduzi de forma um tanto mequetrefe do original em francês.

Em memória de Gilles Dostaler
Gilles Bourque, Bernard Élie, Robert Nadeau, Jean-Marc Piotte, Stéphane Pallage - professores, Universidade do Quebec em Montreal Le Devoir, 7 de Março de 2011, p. UM 6.

Gilles Dostaler pode ser considerado como um dos mais importante historiadores do pensamento econômico, não só em Quebec, Canadá, mas também no mundo acadêmico internacional.
Gilles Dostaler soube dissociar sua pesquisa de seu engajamento político e social. Desde seus anos de faculdade, ele foi um intelectual comprometido e ativo nos debates da sociedade. Na década de 1960, ele foi o primeiro membro do conselho editorial da Parti Pris, ("Tendência") uma revista mensal mantida por jovens intelectuais que teve um impacto considerável à época. Ele foi um dos primeiros a vincular a ascensão do movimento nacionalista na formação da nova classe média canadense, consequência do desenvolvimento de instituições do fordismo e do Estado-Providência.
Juntou-se à revista Socialism do Quebec  na década de sessenta, revista criada em 1964. Após ter feito campanha pelo RIN, ele foi um dos fundadores da CEI (comissão pela independência e pelo  socialismo), grupo dedicado a promover a independência do Quebec e à idéia do socialismo democrático. Foi também um dos organizadores da McGill francessa, que tornou-se famosa como  parte de um movimento mais amplo, reinvindicando a criação de novas instituições acadêmicas francófonas, após o que foram criadas na Universidade do Quebec em Montréal e na rede universitária do Quebec.
Jovem economista, ele esteve envolvido ativamente na organização de cooperativas de economia doméstica,  primeiras associações de consumidores do Quebec.
Endereço alternativo
Após estudos de doutoramento em Paris, tornou-se professor do departamento de sociologia, I’UQAM (1975) antes de se mudar para o departamento de ciências econômicas (1979). Durante a segunda metade da década de 1970, ele foi vice-presidente e presidente do sindicato dos professores da Universidade do Quebec e presidente do comitê de greve de professores de 1976. Ele também foi membro do Conselho Executivo da Federação Nacional de Professores do Quebec (1976-1978), membro do Comitê de Coordenação dos Cem, em 1980, que deu origem ao breve ‘Movimento Socialista’ liderado por Marcel Pepin.
No final dos anos 1970, Gilles Dostaler foi um dos fundadores da Associação de Economia Política (EPA) e foi seu primeiro presidente. A EPA tinha como objetivo difundir um discurso econômico alternativo e a crítica ao pensamento "neoliberal", que se tornaria, em seguida, mais e mais dominante.
Mais recentemente, Gilles Dostaler foi muito ativo no desenvolvimento da economia coletiva, dando  continuidade à sua vontade de contribuir para a disseminação do discurso econômico "alternativo" e de debates críticos junto à sociedade.
Com uma produção científica reconhecida internacionalmente, a produção de Gilles Dostaler é impressionante: não menos de dez livros traduzidos em várias línguas, cerca de 30 artigos nos principais periódicos de sua área, outros 30 capítulos de livros, uma dúzia de colaborações regulares em várias revistas e obras coletivas. Desde 2002, ele assinou no jornal francês Alternatives Éconómiques uma emocionante série sobre os principais autores de economia.
Nos últimos anos, o trabalho de Gilles Dostaler esteve centrado no pensamento de John Maynard Keynes. Economista, filósofo, filantropo, Keynes inspirou as políticas intervencionistas da década de 1930 para a superação da grande depressão. Além de O Pensamento Econômico depois de Keynes (com Michel Beaud), de 1993, Éditions du Seuil, Gilles Dostaler dedicou vários livros ao pensamento de Keynes, incluindo Keynes e suas batalhas (Albin Michel, 2005) traduzido para várias línguas, incluindo inglês, espanhol, árabe e japonês; Capitalismo e Pulsão de Morte (com Bernard Maris), também publicado pela Albin Michel, em 2009 e Keynes, para Além da Economia, com Thierry Magnier em 2009. Estes livros, que tiveram uma impressionante repercussão, são uma novidade vibrante.

Renovação do problema
Para Gilles Dostaler, não se consegue entender a formação do pensamento de um autor sem estudar todos os aspectos de sua vida. No caso de Keynes, ele não deixou nada de lado. Ele teve acesso privilegiado aos seus arquivos no King’s College, em Cambridge, leu cada uma de suas cartas, através de seus diários, seus escritos de juventude, estudou suas contradições, seu amor, sua sexualidade.
Gilles Dostaler realmente revolucionou a metodologia da história do pensamento econômico. A nova abordagem que ele desenvolveu progressivamente em seus muitos estudos consiste em articular uma síntese global de dois modelos de  análise distintos, que aqui se faz uma breve apresentação.
O primeiro desses modelos é uma reconstrução contextual das teorias econômicas: cada economista que contribuíu para a evolução do pensamento econômico de forma um pouco original não pode ser perfeitamente inteligível, de acordo com que postulou Gilles Dostaler, se o contexto social, político e cultural em que trabalhou não for totalmente reconstruído.
O pensamento de um economista  pode ser entendido apenas se for examinado o seu ambiente intelectual (como, por exemplo, suas parcerias intelectuais, seus gostos culturais, suas ligações políticas) se nós traçarmos meticulosamente seu trajeto (as perguntas a que foi submetido, as leituras que fez, as pessoas marcantes que conheceu), numa busca para  compreender sua integralidade, isto é, não só como um pensador, mas antes como um ser humano.
Em segundo lugar, Gilles Dostaler tinha a intenção de tirar rigoroso proveito das ferramentas desenvolvidas nas análises epistemológicas contemporâneas. Para Gilles Dostaler, cada um dos principais marcos da evolução do pensamento econômico podem ser explicados se reconhecermos o que ocorre como pano de fundo das rupturas  fundamentais com as formas anteriores de pensamento. O desafio, então, é tentar entender por que Marx rompe de forma radical com Ricardo e com os clássicos, por que Keynes também rompe com os clássicos e com os neoclássicos e por que, enfim,  um economista como Hayek, mais atento do que qualquer outro ao tema dos  limites cognitivos do agente econômico, trata de destacar de forma quase obsessiva a impraticabilidade de uma economia centralmente planejada.

O homem
Todos aqueles que o conheceram puderam testemunhar que, por trás do pesquisador rigoroso, havia um homem atencioso e carismático, um homem engajado, sempre militando por uma sociedade melhor, um homem que amava a vida em todas as suas dimensões.
O câncer, contra o qual ele lutou, não lhe tirou em nada o prazer para viver com grande intensidade cada momento. Se ele gostava de mergulhar nos arquivos de autores ilustres, Gilles Dostaler amava igualmente fazer uma refeição ou brigar com um salmão no rio de Gaspésie. Ele também era um grande fã de touradas. A caça e a pesca foram artes que permitiram-lhe inscrever-se no equilíbrio entre homem e natureza e de lembrar-lhe quanto somos pequenos ante esse mundo que nos hospeda.

31.3.11

'carne de vaca', uma expressão anacrônica

Segundo os entendidos, a dita carne de vaca - tão abundante em nossas paragens que virou expressão a indicar algo rotineiro e sem qualidades especiais - deve se tornar uma iguaria, coisa como caviar ou escargot. O despertar dos orientais para o mundo do consumo, dizem, tornará o bife cada vez mais caro e raro; o jeito será revisitar as partes menos nobres do gado, que vínhamos esnobando nas últimas décadas.


Nessa toada, por exemplo, ressuscitei recentemente, com grande sucesso aqui em casa, a saudosa brachola - aquele bife enrolado e cozido no molho de tomate - que faz a alegria de qualquer espaguete, ou mesmo de um desenganado arrozinho. Na mesma linha, outro prato candidato à emergência é o Ossobuco. Saboroso, saudável e barato, têm a vantagem de também distrair a clientela. 


Pois, aproveito a boa hora para compartilhar uma receita de Ossobuco que me chegou clandestina. Antes, porém, um aviso: assim que o Camboja completar a sua industrialização, repasso a receita de sopa de pedras (he, he, he.....)




Ossobuco braseado
Por Licínia de Campos 
Nutricionista, integrante do comitê técnico do Serviço de Informação da Carne (www.sic.org.br)


Ossobuco em italiano significa osso com um furo, uma referência ao orifício preenchido de tutano localizado no centro da peça, retirada do corte transversal da perna traseira do bovino. É um corte que contempla músculo, osso e tutano e confere ao prato alto nível de valor nutricional e cálcio. É uma especialidade milanesa, braseada com hortaliças, vinho branco e caldo. Quase sempre leva como guarnição a gremolata, que é um tempero à base de salsinha, dente de alho picado bem miúdo e uma colher de chá de casca de limão siciliano ralada, que deve ser salpicado por cima da carne. 
Há dois tipos de ossobuco: na versão mais antiga, o ossobuco in bianco é aromatizado com canela, folha de louro e gremolata; já na versão moderna, e mais popular, inclui tomates, cenouras, salsão e cebola, c om a gremolata opcional.
O ingrediente básico desse prato é relativamente barato e muito saboroso. Como o processamento é feito por braseamento, o corte rijo se torna macio. O que significa brasear? Do termo francês braiser, é uma combinação de métodos de cocção, que utiliza calor seco e úmido. Normalmente, o alimento é refogado em alta temperatura e depois finalizado em uma panela com tampa (ou pressão) com quantidade variável de líquidos. O brasear se baseia em calor, tempo e umidade para quebrar o rijo tecido conectivo, o colágeno da carne, revelando-se um método ideal para cozimento de cortes rijos. O cozimento lento ou em panela de pressão são expressões do brasear, como por exemplo, o lagarto assado de panela. 
A maioria dos braseados segue os mesmos passos básicos. O alimento a ser braseado é primeiramente selado, até ter sua superfície dourada e seu sabor incrementado. Se o alimento não liberar seus próprios sucos, acrescenta-se então uma pequena quantidade de líquido, que inclui quase sempre um elemento ácido, como tomates, cerveja ou vinho, adicionado à panela, e complementado com caldo. A panela é então tampada e o alimento cozido em fervura bem lenta, até a carne ficar tenra. O líquido resultante do cozimento é finalizado para criar um molho. 
Um braseado de sucesso deve intermediar os sabores dos alimentos cozidos com o líquido do cozimento. Esse método de cocção dissolve o colágeno da carne em gelatina, enriquecendo e dando corpo ao líquido. Brasear é um método econômico, pois permite o uso de cortes rijos e mais baratos e eficientes, pois emprega uma só panela para cozinhar uma refeição completa.
Por causa de sua origem italiana, o ossobuco in bianco é tradicionalmente servido com risotto alla milanese, mas o corte bovino também pode ser acompanhado por purê de batatas ou polenta. Algumas vezes é servido com macarrão. 
Uma receita simples do ossobuc o alla milanese pode ser feita com seis ossobucos aparados, com cerca de 250 gramas cada, uma colher de chá rasa de sal, uma pitada de pimenta do reino, um quarto de xícara de farinha de trigo, uma colher de sopa de azeite de oliva, uma xícara de cebola média picada, meia xícara de cenoura bem picada, meia xícara de salsão bem picado, duas fatias de toucinho cru em cubos, uma xícara de vinho branco seco, uma xícara de caldo de legumes, 450 g de tomates inteiros sem pele, picados.
O ossobuco deve ser temperado com metade do sal e a pimenta e empanado na farinha de trigo. Numa panela despeja-se uma colher e meia de azeite e se refogam, em fogo médio, três ossobucos, dourando-os de todos os lados. Devem ser retirados da panela após 8 minutos e reservados numa travessa. Repete-se o procedimento com mais uma colher e meia de azeite, desta vez, adicionando-se a cebola, cenoura, salsão e o toucinho, refogando-os por 5 minutos ou até as hortaliças ficarem macias . Em seguida, adiciona-se o vinho branco, cozinhando-se por mais cinco minutos ou até o líquido quase evaporar. Adiciona-se o sal restante, o caldo e os tomates. Volta-se com o ossobuco à panela, até o caldo ferver. Tampa-se a panela, abaixa-se o fogo e cozinha-se em fervura lenta por duas horas ou até a carne ficar macia. 
Essa receita é uma reformulação da receita tradicional e tem por objetivo torná-la mais leve e menos calórica (358 kcal). Mesmo assim, não considero a receita original altamente calórica (cerca de 450 kcal). É um mito achar que o ossobuco é muito calórico. É um corte extremamente nutritivo e por ter o tutano, é rico em colágeno, que é responsável pela reposição de tecido muscular para crianças, adolescentes e idosos.

enfim, o pós-autismo?

Embora a data não inspire comemorações, segue uma análise alvissareira sobre a renovação das idéias econômicas

Por Luiz Nassif

O fim dos "cabeças de planilha"

Na semana passada, o seminário “Repensando a política macroeconômica”, organizada pelo FMI com os economistas David Romer, Joe Stiglitz e Michael Spence e com seu economista-chefe Olivier Blanchard ,decretou oficialmente o fim da era dos “cabeças de planilha” - tipo de analista que contaminou o mercado financeiro nas últimas décadas, com simplificações que desmoralizaram o que se entendia por ciências econômicas.

Munidos de suas planilhas, e com conhecimento insuficiente em política, análise setorial, ciências sociais, psicologia social, e mesmo correlações básicas de economia, esses economistas julgaram ter descoberto o equilíbrio universal, o fim dos riscos sistêmicos. Qualquer questionamento à sua falsa ciência era tratado com superior desprezo.

O encontro promovido pelo FMI é a pá de cal nesse tipo de pensamento cabeção, primário, manipulador, insuficiente.

Um dos princípios era a visão monofásica de que cada instrumento de política econômica deveria visar apenas um objetivo.
Por exemplo, para inflação em alta, aumento das taxas básicas de juros. Esse aumento impactava a dívida pública, apreciava o real, causava desequilíbrio nas contas externas que, mais à frente, provocava uma maxidesvalorização do real que comprometia o próprio combate à inflação.
Pouco importava: juros só devem se preocupar com a inflação.

Às vezes o aquecimento do consumo se dava em um setor específico. A situação poderia se resolver com uma restrição ao financiamento àquele setor. Mas as “boas práticas” diziam que apenas os juros poderiam ser.

Anos atrás, monetaristas brasileiros – da melhor escola de Chicago – alertavam para os erros da política de metas inflacionárias.
Define-se uma meta, mede-se a expectativa dos agentes econômicos. Se estiver acima da meta, aumentam-se os juros. Os monetaristas alertavam que nesse modelo não se levava em conta o excesso de liquidez (de moeda) na economia.
Consequência: esse excesso formou bolhas especulativas por todos os poros do sistema financeiro internacional, resultando na grande crise de 2008.

Esse pensamento manipulador criava um agente financeiro imaginário, racional que por si só seria capaz de coibir qualquer abuso do sistema financeiro internacional, permitindo abrir mão de qualquer regulação. Se uma instituição abusasse, se algum ativo estivesse muito caro, os investidores simplesmente trocariam por outras instituições ou ativos, regulando automaticamente o mercado.
Era uma miragem, como se todo investidor fizesse cálculos complexos, análises de risco, arbitragens.

Nas instituições financeiras, havia cálculos infernais mostrando que quando despencasse a cotação do ativo 1, haveria um aumento na cotação do ativo 2, de tal maneira que aplicando em ambos o risco tenderia a zero.
Imbecis, sem nenhuma noção do que uma crise sistêmica provocava no mercado. Quando sobrevinha a crise, caía o ativo 1. Para cobrir sua posição naquele mercado, o banco vendia o ativo 2, provocando também sua queda e assim por diante.

Havia muito mais erros nessas formulações. Nunca foram combatidos porque criaram uma cadeia improdutiva de juros e especulação.
Só a crise para repor o conhecimento econômico no seu devido lugar

27.3.11

passagens de ônibus: fim da picada ou começo da mordida?

Sabemos todos que as grandes cidades brasileiras estão travando por conta do uso irracional do automóvel particular. O mais grave, contudo, é que sabemos disso há décadas, e continuamos comprando carros, construindo avenidas e viadutos e, sabendo cada vez mais.

Ao longo dessas décadas, enquanto agonizamos encalacrados, pudemos ouvir no radio os analistas econômicos dizerem que o setor público é um péssimo gestor e que subsídios de qualquer natureza devem ser banidos: produzem distorções nos sistemas de preços, dão fôlego a empresas incompetentes e constituem uma via azeitada para a corrupção. Recado: os serviços de utilidade pública devem ser transferidos, na forma de concessão, a empresas privadas e os preços devem ser determinados de acordo com as regras de mercado, isto é, devem cobrir os custos efetivos e ainda garantir uma margem de lucro que seja empregada em novos investimentos e ainda remunere o capital. Simples, cristalino, imune aos desvios morais e ao apetite particularista que caracteriza a alma humana.

Só que o simplismo dos economistas de rádio, o espírito sabujo dos mídia-ligeira, faz questão de esconder que, embora de fácil digestão, as leis de mercado falham tremendamente quando é preciso conciliar interesses de curto e de longo prazo ou quando se trata de definir o preço de um bem público - como é a passagem de ônibus. Exemplos: para a empresa de ônibus, quanto mais cheio o ônibus, maior a rentabilidade - para o cidadão e a cidade, pior; se o ônibus é caro e lotado, o cidadão lutará para conquistar um carrinho - comprando o carro, entupira mais a cidade, elevando o tempo dos trajetos, aumentando o custo para as empresas de ônibus que buscarão aumentar as passagens, dando novo impulso para o cidadão comprar um carro; etc..., etc...

Mas os problemas não são apenas esses. O preço das passagens não pode ser tratado como um custo individual a ser arcado pelo consumidor-cidadão numa relação mercantil com o empresário de ônibus. Custos elevados de transportes resultam em gigantesca e incomensurável ineficiência para o conjunto da sociedade: além da obvia perda de tempo de quem gasta horas do dia encalacrado, recursos que poderiam ser despendidos em outras atividades são sugados pelo realismo tarifário do transporte público.

Um exemplo escandaloso dessa irracionalidade se encontra, por exemplo, no peso dos custos de transportes nos cursos de qualificação profissional. Como sabem bem os mídia-ligeira, há no país uma urgente necessidade de capacitação da mão-de-obra, fato que não só restringe o nosso desenvolvimento, como dificulta o acesso dos mais pobres ao mercado de trabalho, obstruindo a ascensão social. Pois bem, os governos, utilizando recursos que provém da folha de pagamento das  empresas, financia, através de diferentes órgãos (MTE, MEC, Sistema S, etc), inúmeros cursos profissionalizantes voltados às populações  mais vulneráveis. Com isso, pagam-se professores, materiais didáticos, aluguel de salas de aula, lanches, despesas administrativas e... , em alguns poucos casos, vale-transporte. Quando faltam recursos para o transporte, a evasão nos cursos cresce significativamente, afetando principalmente os que mais precisam. Ficam os remediados, somem os lascados. Quando é pago o vale-transporte, de 30 a 50% dos recursos são empregados na compra das passagens, em detrimento do pagamento a professores e outros recursos pedagógicos.

Alguém haverá de dizer: mas não se pode oferecer desconto nas passagens de ônibus?

Em coro, gestores públicos e privados ecoarão os dogmas ensinados pelos mídia-ligeira, condenando os subsídios, lembrando que o sistema já carrega o peso dos descontos a idosos e estudantes secundaristas. Tudo em nome da eficiência alocativa, da racionalidade microeconômica do mercado de transportes.

Não fosse tão arraigada e difundida esta miopia, faria todo o sentido do mundo arrecadar tributos sobre outras fontes (grandes fortunas, pedágios urbanos, heranças, renda superior a 50 salários-mínimos, movimentação bancária, etc...) e subsidiar as passagens dos transportes coletivos, baixando o seu preço de forma radical. Numa só tacada, desafogaríamos o bolso dos que mais necessitam e reduziríamos a pressão sobre o trânsito das grandes cidades.

Haja ideologia!

25.3.11

zizo vivo

Hoje vou de mata atlântica. De um pedaço dela, de sua porção localizada no extremo sul do estado de São Paulo, na bela região do Ribeira. Mais precisamente, no município de São Miguel Arcanjo.

A história começa no acinzentado ano de 1969, entre os meses de setembro e outubro. D. Quinha, mãe de oito, é avisada que o corpo de seu filho de 24 anos foi encontrado morto a bala na cidade de São Paulo. Era o Zizo, que tinha partido para estudar engenharia na USP. "Abatido" feito caça.

29 anos mais tarde, em 1998, uma segunda notícia de Zizo chega a São Miguel: a justiça brasileira determinara uma indenização de R$ 120 mil por reconhecer que Luiz Fogaça Balboni fora assassinado pelas forças do Estado, isto é, pelos capangas do Delegado Fleury.

Que surpresa! D. Quinha, seu marido Luiz e os sete irmãos, jamais souberam as razões da morte de Zizo. Fora encontrado morto a bala, ponto. Mas agora a história de Zizo volta à tona. Através dos autos processuais, descobrem que Zizo havia entrado para a clandestinidade - militava  na ALN - e que foi morto durante uma ação de "expropriação" a uma agência bancária na Alameda Santos, São Paulo. Seu parceiro na operação sobreviveu, foi interrogado e contou os detalhes: chegaram ao ponto de encontro na hora marcada, mas identificaram um carro suspeito parado próximo à agência. Tentaram fugir, mas os caras saíram atirando. Zizo foi atingido e seu parceiro escapou. Ferido, preso e levado ao hospital, Zizo morreu.

Com quase trinta anos de atraso, D. Quinha descobre seu filho. Que orgulho! Agora finalmente entendia porque, na última vez em que o Zizo esteve em casa, pediu à mãe que cantasse 'Sussuarana'. Era a morte que sussurrava.

Família larga, terra pequena, todos se sensibilizaram ao conhecer a heróica história de Zizo. Como mantê-la viva? Como devolver a Zizo uma parte do sonho que o embalou?

A indenização!

Tinham R$ 120 mil. Divididos, ajudariam pouco na vida de cada um dos irmãos. Preferiram comprar um pedaço de mata virgem. Zizo e seus irmão passaram a infância enfronhados naqueles matos, e nada melhor do que um pedaço de mata para guardar viva a história de Zizo.

Assim, com o dinheiro da indenização e muita colaboração e dedicação dos familiares, criaram então o Parque do Zizo, uma reserva particular de mata atlântica, com 300ha, que recebe escolas e turistas para compartilhar o mundo e os sonhos do Zizo - que, dizem, vez ou outra assobia por lá junto com a passarinhada.

23.3.11

promiscuidade 24 quilates

Finalmente consegui assistir ao documentário Inside Job, de Charles Ferguson.

Excelente!

Todos que têm algum interesse em compreender as forças que movem a sociedade e a economia contemporânea devem assistí-lo.

Reunindo um conjunto de entrevistas com personagens-chave da chamada crise do subprime que se alastrou a partir do setor bancário dos EUA em 2008, o arguto Ferguson conseguiu depoimentos inacreditáveis, nos quais renomados economistas se portam como sacos de batatas, gaguejam e perdem a compostura ante um repórter que apenas os coloca diante de sua própria criatura.

É muito didática a explicitação dos canais de promiscuidade que soldaram com absoluta eficácia os interesses financeiros e as instituições reguladoras (incluso governos). E àqueles que vivem a apontar o dedo para a corrupção política, certamente será ainda mais relevante conhecer a monstruosa corrupção branca que está na base da arquitetura financeira que dá fôlego aos bussines de hoje.

Abundam calhordas e sujeitos inescrupulosos que recebem gorjetas de centenas de milhões de dólares; mas o filme tem o mérito de deixar claro que não se trata apenas de uma questão moral ou de um desvio de conduta localizado no tempo. Fica evidente que se trata de um problema estrutural do capitalismo atual: sem uma regulamentação que restrinja fortemente a livre movimentação de capitais, não parece possível imaginar que a sociedade pare em pé.

PS: 
(1) entre outras coisas, o filme demonstra também o embuste que é o governo Obama, completamente entregue aos mesmos personagens que desde os anos oitenta se encarregam de alimentar a banca. 
(2) Louve-se os movimentos iniciais do governo Dilma que, pela primeira vez desde a redemocratização, montou uma diretoria do Banco Central constituída 100% de servidores da instituição. É o mínimo que se espera para a equipe de um órgão que, entre outras, tem a missão de vigiar o sistema financeiro.

A imagem acima é do fotografo Chema Madoz 

20.3.11

direto do parachoque

"Quanto mais velho eu fico,
mais rápido eu era"

17.3.11

o mais cabaço dos suingues

Os anos 80 foram pródigos em extravagâncias sentimentaloides. Nas roupas, nos cabelos, nas músicas, abusava-se dos recursos artificiais e dos sentimentos fáceis para marcar a contra-reforma dos costumes e assim, talvez, expurgar o que restava de hippie ou de punk no sangue das gentes.

E foi justamente naquela década que vivi a adolescência e, confesso, ouvi e gostei de músicas que só o velho esquema dos jabás das FMs explica (será?). De Radio Taxi e sua Pequena Eva a Supertramp e outros do gênero, era um ramerame atrás do outro. Raspando o tacho daqueles tempos tristes, de agonia da ditadura, em que nem o Palestra Itália ajudava, e quando a revista Playboy mostrava apenas os seios, creio que o símbolo maior do suingue insosso e bem comportado foi o grupo The Alan Parsons Project, uma espécie de trilha sonora para tardes de chuva e de braço direito cansado.

Segue, não sei bem por que, um vídeo do grupo

15.3.11

terremoto econômico racional

Enquanto japoneses se dedicam à terrível tarefa de contar os mortos e dimensionar a catástrofe, economistas em terra firme já começam a 'precificar' os impactos da tragédia sobre o futuro. De olho no balancete, ativo contra passivo, já tem gente imaginando a prosperidade que virá, decorrência lógica do esforço de reconstrução que obrigatoriamente acontecerá assim que as chacoalhadas diárias amainarem.

De fato, considerando que o Japão possui reservas mais do que suficientes para cobrir os prejuízos e que, ademais, tem condições de se endividar a custos bastante baixos, é de se esperar que, passado um período de susto e queda da produção, as taxas de investimentos deverão saltar a níveis elevados, com importantes impactos sobre a produtividade e o nível de atividade no país. Como nas tragédias de Eurípedes, depois de 20 anos de estagnação, sobre a tumba de milhares de compatriotas, os Japoneses deverão retomar a proeminência econômica que tiveram em épocas passadas.

Mas, esse roteiro de tombo seguido de retomada não só é manjado, como tem sido responsável por boas, embora amargas, lições de macroeconomia - esta mesma, aliás, é filha direta do cataclisma econômico que atingiu o centro da economia mundial nos anos 30 do século XX.

A questão crucial, entretanto, é saber por que os governantes e seus assessores econômicos não se antecipam aos desastres e lançam mão dos instrumentos de política econômica de que dispõem para mover os paquidermes cansados nos quais costumam se transformar as economias ditas maduras?

Como entender que patotas como as de Obama, Summers, Zapattero, Geithner, Strauss Kann, Trichet, etc. não se habilitam a mexer os pauzinho e mover os capitais empossados rumo aos investimentos produtivos?

Em nome da metafísica dos mercados equilibrados, do benfazejo sopro da livre escolha que antes deprime do que bem aloca os recursos na produção, - gerando renda e trabalho - esses senhores de renome se omitem covardemente de suas atribuições de 'condottieri', preferindo o gradualismo do cotidiano chinfrim e, quem sabe, uma tragédia redentora como a que atinge agora o Japão.

Haja ideologia!

12.3.11

mantega à direita de sarkozy

Assim como nos anos 70 o mercado de petróleo serviu de veículo para processos especulativos que absorviam e se alimentavam da liquidez internacional - denominada em eurodólares - a onda de valorização das commodities que assusta o mundo hoje parece cada vez mais ser um processo de mesma natureza, agora porém amplificado pelo avanço da liberalização financeira desde aquela remota década de 70.

Em artigo publicado no site Carta Maior (clique aqui), o Prof. Belluzzo demonstra com brilhantismo os intrincados nexos que vinculam a explosão dos preços dos alimentos à frouxidão bancária e à lassidão monetária que faz o moinho girar e mata gente de fome pelos cantos do planeta. A habitual educação do professor, no entanto, provavelmente impediu que ele fizesse menção ao fato de que lamentavelmente o Ministro Guido Mantega votou contra a proposta de Sarkozy, que sugeria ao G20 criar mecanismos que restringissem as especulações com commodities. Mantega, por oportunismo ou miopia, foi a favor do livre jogo dos mercados, esses mesmos que provocam tsunamis sobre a atividade produtiva.

10.3.11

sus: muito está feito; muito por se fazer

Gastão Wagner analisa a pesquisa sobre o Sistema de Indicadores de Percepção Social sobre Saúde do IPEA
Entrevista concedida ao site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips) sobre saúde do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) foi divulgado recentemente e revela que a população, sobretudo a parcela que usa os serviços da saúde pública, avalia positivamente o SUS.  De acordo com o estudo, isso não significa que os usuários do sistema não tenham críticas; eles querem, por exemplo, mais profissionais atuando. Nesta entrevista, o médico e professor do departamento de saúde coletiva da Unicamp, Gastão Wagner, analisa os dados da pesquisa e conclui: os indicadores "confirmam que o SUS é uma política pública importante e prioritária e que os governos precisam dar mais atenção à saúde". Para ele, os dados indicam também qual deve ser a prioridade para os gestores do SUS: a Estratégia Saúde da Família, em um sistema mais integrado e regionalizado.

O Sips sobre saúde, divulgado pelo Ipea recentemente, mostrou, que de uma forma geral, a população avalia positivamente o SUS. O que esse dado revela sobre a importância de  um sistema universal de saúde no Brasil?
Esse dado e alguns outros demonstram a importância do SUS para assegurar o direito à saúde e o atendimento de uma parte importante da população. Mostra também como, apesar dos problemas, o SUS consegue desempenhar um papel positivo. Isso confirma que o SUS é uma política pública importante e prioritária e que os governos precisam dar mais atenção à saúde.

De acordo com a pesquisa, a população considera como pontos positivos do SUS o fato de o atendimento ser gratuito e universal, mas estes são justamente os princípios do Sistema. A partir desse dado, podemos analisar se de fato a população entende a saúde como um direito?
A pesquisa não investigou isso, não fica claro se a população toma a saúde como um direito. Então, não podemos tirar uma conclusão sobre isso, mas há alguns dados interessantes. A população, ao mesmo tempo que elogia, também aponta problemas no SUS: a falta de médicos, as filas, a espera, a dificuldade de acesso a especialistas e exames. Além disso, a pesquisa confirmou o dado de que quem usa o SUS confia mais e o valoriza mais do que a classe média e a elite que não usam, que têm um preconceito sobre o SUS. Outro aspecto interessante é que quem usa o SUS avalia melhor a Saúde da Família do que os outros serviços; depois vem o atendimento especializado, e lá em baixo está o atendimento em pronto-socorro e postos de saúde tradicionais. Isso demonstra que a população não é tonta. Na Saúde da Família faltam médicos, mas quem tem acesso sabe que o atendimento tende a ser melhor, de mais qualidade do que o do pronto-socorro. Eu achei isso muito significativo, e é uma coisa que várias autoridades vêm negando, em vários estados do Brasil: cidades como Rio de Janeiro e São Paulo têm priorizado a extensão do acesso através do pronto-atendimento em vez de uma atenção primária decente de Saúde da Família. Essa pesquisa é um sinal de alerta. Se por um lado há falta de médicos, não adianta encher de pronto-atendimentos, não adianta colocar médico de plantão 12 horas fazendo consultas feito loucos e dando remédios.

E como o senhor avalia as prioridades do Brasil para o SUS hoje? Qual o lugar da Estratégia da Saúde da Família nacionalmente?
Eu sinto que na última campanha nacional [eleições 2010], em vários estados, a ênfase maior de vários governadores foi nas tais Unidades de Pronto Atendimento, as UPAs. A presidente prometeu 500 unidades pelo Brasil, e essa é a política que predomina também na prefeitura de São Paulo e no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a Saúde da Família tem muita dificuldade de inserção do médico, de carreira, problemas de expansão, chegou aos 40 %, 50 % de expansão e não sai disso. Tem um problema de expansão muito grande aqui no Sul, no Sudeste e no Centro-oeste. Nesse sentido é que a pesquisa é um alerta muito importante, mas eu creio que o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais de saúde ainda não deram uma solução adequada para a qualificação e expansão da Saúde da Família. Há um impasse de financiamento, de modelo, que está muito rígido, com problemas de pessoal. Mas a pesquisa indica que o caminho é por aí e que a Saúde da Família tem que ser priorizada.

Uma das principais melhorias sugeridas pela população na pesquisa é o aumento do número de médicos. Como o senhor avalia a política atual do país para a formação e manutenção desses profissionais atuando no SUS?
A Estratégia de Saúde da Família, onde falta muito médico também, e até os ambulatórios ficaram a cargo das prefeituras, e as prefeituras sozinhas, sem uma política de apoio financeiro, aposentadoria, de educação permanente, de formação do Ministério da saúde e das secretarias estaduais, não conseguem resolver esse problema da política de pessoal. Se deixarmos cada município se virar, se não conseguirmos fazer concursos de carreiras pelo menos estaduais, com fundos e financiamentos entre o Ministério e as secretarias estaduais e com gestão municipal, teremos muita dificuldade de consolidar a Saúde da Família, e também os ambulatórios de especialidades. Está faltando psiquiatra nos Caps [Centro de Atenção Psicossocial] e não se consegue profissionais; faltam também anestesistas nos hospitais, profissionais na terapia intensiva, inclusive pediatras. E não é falta de formação , porque temos expansão desse mercado: bastante enfermeiros, bastante médicos, bastante odontólogos. A dificuldade é a carreira do SUS que não está atrativa, porque é muito irregular, há muita contratação ilegal, precária, salários abaixo do mercado. Então, estamos tendo uma dificuldade de fixação, não é nem o número de profissionais. O que falta, do ponto de vista da formação, é a residência., As vagas de residência na Saúde da Família, multiprofissionais para médicos e enfermeiros principalmente, está muito abaixo do necessário. Então, como a Saúde da Família é uma política fundamental , é preciso investir muito em residência nessa área, aumentar seis, oito vezes o número de alunos. Mas, para fazer isso tem que melhorar o mercado, tem que ter capacidade de absorção, tem que criar o interesse para os profissionais se dedicarem a essa carreira do SUS. Outra coisa é que a Estratégia de Saúde da Família está muito isolada da rede; fala-se muito hoje em rede, mas a Saúde da Família fica num canto. No mundo inteiro, para se fixar um médico, o médico de família - que se chama generalista por aí afora - tem prioridade para dar o plantão no pronto-atendimento, para participar da enfermaria, porque uma porcentagem pequena dos médicos pensa em trabalhar a vida toda na atenção primária. Então, as estratégias são de trabalhar com a ideia de sistema, de rede: fazer com que não só os pacientes, mas também os profissionais e as equipes circulem. No Brasil se fala muito em rede, mas como a Saúde da Família está a cargo dos municípios e os hospitais e centros de referência são das secretarias estaduais, nós não temos rede de fato, a integração é muito baixa, isso tudo tem dificultado. Mas considero a pesquisa uma boa avaliação do SUS, indica rumos e indica que o que foi feito está tendo um resultado positivo reconhecido pela população.

Atualmente, há processos em curso de mudança de gestão do SUS e administração do sistema pelo setor privado. Mas isso enfrenta resistência por parte de grupos organizados de trabalhadores e pesquisadores da saúde que veem estes processos como tentativas de desmantelamento e privatização do SUS. Essa avaliação da população revelada pelo Sips da importância do SUS ser gratuito pode se contrapor a essa corrente de privatização?
Defender a gratuidade e o caráter público em alguma medida é positivo. Mas isso não indica que a população rechace a privatização, até porque, na verdade, é uma semiprivatização, porque uma fundação privada e uma organização social não têm direito de cobrar da população. Elas têm dupla porta, outras coisas, mas o grosso do atendimento das Organizações Sociais [OSs] no Rio e em São Paulo, por exemplo, é gratuito.  Os hospitais também continuam gratuitos, então, essa privatização tem mais a ver com a gestão.

E como o senhor avalia estes processos de mudança de gestão do SUS com as OS e fundações de direito privado?
Tem aí um aspecto ideológico que faz parte do programa neoliberal e liberal, que é de diminuir a área estatal, pública, com um certo descrédito na gestão estatal e pública. Existe esse lado ideológico, mas tem também um lado que são a inércia e a incapacidade do SUS de fazer a sua reforma administrativa, de construir as suas carreiras, com avaliação, pagamento adequado, progressão por mérito, criação de rede, integração. São 20 anos de SUS e nós avançamos muito pouco na reforma de gestão. A atenção primária continua isolada, cada hospital é autônomo. Aí no Rio de Janeiro, por exemplo, o Hospital Geral de Bonsucesso não tem nada a ver com a Rede Teias de Manguinhos. O Hospital é estatal, a rede Teias é uma OS, mas é uma organização social da Fiocruz, pública e não tem nada a ver. E essa não é uma exceção, é a regra em todo o país. Então, essa inércia vai dando impaciência na população, que quer um desempenho de gestão adequado, quer produtividade, qualidade, quer diminuir fila, e boa parte da fila no Brasil é problema de gestão, não é nem de capacidade instalada. Não temos avaliação de risco, não há ninguém que se responsabilize para garantir o acesso imediato de quem tem um diagnóstico de risco, por exemplo. Então é muito mais um problema de gestão, ainda que haja um problema de acesso também. Não tem informatização da rede até hoje unificada, é um absurdo isso, o quanto já gastamos em informatização! Alguém que está na Saúde da Família, por exemplo, não sabe onde há vaga para tratar de câncer e também não tem acesso imediato se ele achar que tem o diagnóstico, como acontece em Portugal, na Espanha, em vários outros países. Então, a alternativa a essa privatização, que é apresentada como alternativa gerencial, é avançarmos nas diretrizes do SUS, não apenas na universalidade e gratuidade, mas na regionalização, nar avaliação de risco. O SUS municipal não tem saída, ele precisa ser regionalizado, com vários municípios, uma rede unificada, gestão unificada, se não vamos fragmentar o SUS mais ainda com essas OSs, fundações. E isso não é uma saída.

Mas como garantir que, mudando a gestão para que ela seja mais regionalizada, os problemas de desintegração não persistam?
Criando uma rede única. O hospital aí de Bonsucesso [Rio de Janeiro], por exemplo: ele tem que estar dentro da gestão regional de toda a rede básica do entorno. Alguém tem que comandar isso tudo, fazer o planejamento, avaliação e tem que prestar contas para o mesmo gestor regional. Temos que ter carreiras. O médico de família poderia dar plantão no pronto-socorro desse hospital ou nas UPAs dessa região, o enfermeiro também. O SUS, apesar do nome, sistema único, é um sistema fragmentado, não é bem um sistema, é um semi-sistema com um grau de fragmentação muito grande, que as OSs e fundações estão ampliando. A gente já tinha a fragmentação município, estado, Ministério da saúde, e também dentro do município, onde a diretoria de atenção primaria é uma, de hospitais é outra, de aids é outra, de saúde mental é outra. E no estado é a mesma coisa. A gestão do SUS tem que ser territorial, regional, no mundo inteiro é assim. A atenção primária senta junto com os hospitais no mesmo território e região, a saúde mental da mesma região. O pessoal fica falando em rede de saúde mental, em rede de linha de cuidado, mas não é isso. E aí, como temos muita deficiência de gestão, de carreira, de regionalização, aparece uma saída mágica que é: ´vamos colocar mecanismos de gestão privada, de OSs, de fundação privada, contratação por CLT, quem não trabalha a gente põe para fora´. Isso aumenta o poder do gestor, óbvio; diminui o poder das corporações; e aí fazem metas, produtividades, os pacientes têm que ficar internados só quatro dias na clínica médica, se passar disso perde-se dinheiro, os médicos perdem dinheiro, as enfermeiras, o hospital. Então, pegam meta da gestão privada, de fábrica de automóvel, de banco, de restaurante e colocam no setor saúde tentando responder a esta crise de gestão que tem outra complexidade. Então, são duas alternativas que estão em jogo.

Como este quadro interfere no crescimento da mercantilização da saúde?
Aconteceu uma coisa no Brasil que fiquei surpreendido, mas com o crescimento econômico é esperado. Como o SUS está empacado, o setor privado, de saúde suplementar, cresceu muito, ele tem 50% do recurso financeiro. Então, para fisioterapeuta, médico, enfermeiro, o SUS não é o único mercado de trabalho. Por isso essa falta de gente,  ainda que seja pouca gente para ser atendida - cerca de 24% da população brasileira - há muito dinheiro. É a mesma quantidade de recursos do SUS, que é distribuída para os profissionais de saúde trabalharem atendendo menos gente, com menores condições de trabalho. Então, esse crescimento do setor privado é preocupante, ameaça o SUS e ameaça inclusive do ponto de vista ideológico e cultural. Quem não está ainda no seguro privado tem sonho de entrar. Aí na Fiocruz deve ter um plano privado de saúde, o Ministério da saúde tem também, este é um sentimento da nova camada de trabalhadores, das chamadas classe C e D. Apesar de o pessoal gostar de o SUS ser gratuito, do ponto de vista da luta cultural e ideológica, estamos mais fracos.

E como se contrapor a esse processo do ponto de vista político e ideológico?
Tem que melhorar o SUS, divulgar direito as formas de atendimento e resolver todas essas coisas que eu estou falando. Eu falei da necessidade de se priorizar a Estratégia de Saúde da Família, mas eu vou falar uma coisa que dificulta essa legitimidade cultural: o governo brasileiro designa quem é o seu enfermeiro e médico de família, então, a liberdade de escolha é muito baixa. Na Inglaterra e na Espanha, a população pode escolher na região, no distrito de saúde, entre 20 e 30 equipes. Outro exemplo: nós queremos que o pré-natal seja feito na Saúde da Família, só que o médico de família não faz o parto. Quem hoje em dia, que vai adquirindo cidadania e consciência, não quer que o médico que fez o pré-natal seja quem acompanhe o parto? O SUS tem que pensar nisso. Nós não estamos mais trabalhando apenas com miseráveis, mas com pessoas que começam a lutar por qualidade de vida, por humanização. Um dos programas prioritários do governo federal agora é sobre a saúde materno-infantil, com a intenção de priorizar esse atendimento. Está correto, tem que priorizar mesmo, mas não pode ser só o acesso. Como é que o médico que faz o pré-natal poderá acompanhar a maternidade? Como é que o SUS irá pagar? Com a visão que nós temos de quatro horas de trabalho, jornada, bater ponto, salário fixo, fica difícil, porque em todos os países com sistemas universais, o honorário é variável, se o profissional faz três partos ganha tanto, se faz um só por mês, ganha outro tanto. Então, é preciso pensar em outras coisas para criar legitimidade cultural sem privatização; é todo um caminho a ser feito.

E como a população desses países vê o sistema de saúde?
Isso varia muito de país para país e varia também conforme a época. Tem época que o sistema avança, recua, isso é dinâmico, mas em geral os sistemas nacionais europeus e o cubano são muito bem avaliados. E quando há alguma ameaça, a opinião pública e os trabalhadores defendem o sistema contra alguma restrição. As pesquisas são muito variáveis. Na Inglaterra é lei, eles fazem a cada quatro anos um relatório que se chama Black report, um "informe negro", eles chamam de negro porque fala dos problemas do sistema, mas isso para defender o sistema. A população fala, há também dados técnicos, de infecção hospitalar, filas, tempo de espera, mortalidade, divulgam tudo e tornam tudo transparente exatamente para defender. Esconder os problemas, ao contrário do que muito marqueteiro pensa, não ajuda o amor da gente pelas políticas públicas. Então, esse hábito seria uma outra forma de o SUS ganhar legitimidade. Por exemplo, abrir as filas, quais são as filas? Onde tem fila? O que se pode fazer para acabar com elas? Tornar transparente uma por uma e isso virar um problema público. Qual é a fila para o câncer de mama? Qual é a fila para o diagnóstico, para o tratamento? Qual é a fila para reabilitação física do AVC [Acidente Vascular Cerebral]? Então, acho que todos estes são mecanismos de legitimação, de vincular a gestão à qualidade e à ideia de controle social. Esta ideia na teoria é muito forte no SUS, mas ficou limitada às conferências, com a militância profissional, que são os mesmos de sempre, que perdeu potência, e isso é outro problema.

E as conferências tem tido resolutividade?
Elas perderam muito peso, a minha análise é que da 11ª para cá elas são quase um risco n´água, uma coisa da burocracia interna, perdeu muita força política, inclusive de interferir na gestão, na sociedade. Este ano é ano de conferência, o conselho nacional está em discussão, vários conselhos municipais estão emperrados, outros funcionam. Então, temos que pensar o que fazer, e, por exemplo, este Black report é uma forma de controle social fundamental, sai dos conselheiros e vai para a sociedade inteira. Esta pesquisa do Ipea tem este papel, precisa ser divulgada e comentada, tanto os aspectos positivos quanto os negativos.
Entrevista publicada no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).