4.9.12

vestibular: o rabo que abana o cachorro

No post anterior, tratei da polêmica em torno das cotas de 50% nas universidades federais e defendi que, ao contrário do que muitos têm dito, não considero que sejam um fator de redução da qualidade, nem que seja o fim da meritocracia.

Mas o que me traz de volta ao assunto, foram alguns comentários de leitores indignados - principalmente no Facebook - que contra-argumentaram com a tese de que, se o governo quer aumentar as chances de ingresso no Ensino Superior daqueles que vieram de escolas públicas, o correto seria investir pesadamente na Educação Básica, para que daqui a alguns anos, os alunos da rede pública possam disputar em condições de igualdade as vagas do ensino superior.

Perfeito. Sou absolutamente a favor de que se faça um grande investimento na Educação Básica. 10% do PIB já!

Porém, não vejo porque tratar as duas questões como excludentes - até porque para as gerações que já passaram ou estão hoje na rede pública não há como recuperar essa lacuna em sua formação.

A questão que me parece efetivamente relevante em toda essa discussão é o mito do vestibular, que vai se tornando mais uma jabuticaba de nossa pátria.

Sob o mantra da meritocracia, inventamos um funil educacional que, concebido para aferir a qualidade pedagógica do ensino médio, está reduzindo o ensino médio a clínicas de adestramento de adolescentes. Ou seja, perversamente, o meio se tornou fim: o vestibular ganhou tanta importância em nosso sistema de ensino que terminou esvaziando os projetos pedagógicos das escolas, substituindo livros por apostilas, professores por animadores de auditório, sábados por simulados.

Não sei se todos têm consciência do que falo. Eu mesmo, me dei conta do problema há pouco tempo.
Como sou pai de um adolescente, sai em peregrinação atrás de uma boa escola, preparado para conversar com coordenadoras pedagógicas ou diretoras que me contassem um pouco do projeto de cada qual.

Quebrei a cara! As ditas "boas escolas" funcionam hoje em prédios que se parecem com agências bancárias. No lugar da velha diretora, que apoiava os óculos de leitura sobre os peitos, quem me recebe é uma 'Juliana Paes' de lábios doces, que me apresenta os folder's e me disponibiliza uma senha para que eu possa consultar o material pedagógico no site.

E fui a outra. Mais outra. Com pequenas variações de logotipo, de batom, senhas e softwares, as escolas já não fazem outra coisa que não seja preparar para o vestibular.

Claro que existem exceções. Poucas. Raríssimas. Algumas ligadas a ordens religiosas, outras vinculadas a culturas estrangeiras, os bons e velhos colégios técnicos e as caríssimas, que em São Paulo chegam a cobrar de 5 a 10 salários mínimos por mês e oferecem para o seu filho o melhor que o mundo burgues pode-se comprar.

O resto,... o vestibular moeu!


1.9.12

cotas e meritocracia: tudo a ver

Não estou entre aqueles que se entusiasma com o discurso da meritocracia como critério exclusivo para a inclusão no ensino superior. Por duas razões, que me parecem óbvias:

1º) Por princípio ético: não acho que direitos fundamentais devam ser acessados por mérito. E, universidade, nos dias de hoje, não é mais uma questão de formação de quadros, nem apenas de preparação de uma elite dirigente, mas sim de garantia de acesso à vida digna. Se ao longo do século 20 nas sociedades avançadas foi possível universalizar a Educação Básica, no século XXI me parece possível e desejável que seja universalizada a Educação Superior.

2º) Falar de meritocracia pressupõe igualdade de oportunidades. Como ainda estamos anos-luz desse idílico mundo da abstração liberal, me parece fundamental e democrático que aqueles que nasceram e cresceram em condições desfavoráveis (famílias pobres, precárias condições de vida, acesso a escolas de baixa qualidade, etc) devem ter, sim, um benefício extra nas provas que dão acesso à universidade pública.

Dito isso, me disponho a dar de barato o argumento "meritocrático". Tudo bem, vamos aceitar a tese de que nas universidades públicas devem estar as melhores cabeças do país. Mas, então, como escolher as melhores cabeças?

Com uma prova - ou uma bateria delas - é possível selecionar os melhores ou os mais bem preparados?

Um aluno que estudou 12 anos numa escola pública com enormes deficiências, cujos pais não estudaram, portanto, não teve contato cotidiano com os temas da "sociedade letrada" e tira nota 6 numa prova de seleção é melhor ou pior do que um aluno que alcança nota 8, mas que estudou numa escola privada de elite, foi velejar na Escandinávia, vive num ambiente "culto", almoça, janta e come barrinhas de cereais entre uma aula de inglês e outra de judô? Quem desses dois é mais capaz? Qual deles é mais inteligente? Quem tem mais mérito? De quem a sociedade pode esperar o melhor quadro?

Eu, que sou professor universitário em uma faculdade privada, e que, graças ao Prouni, dou aulas para os dois extremos, estou convicto de que os alunos que superaram grandes adversidades e conseguiram se destacar no frágil sistema público de ensino de nosso país são aqueles que têm melhor desempenho, sobre os quais o "efeito acelerador" do ensino superior é mais evidente.

Além disso, é bom lembrar que estes heróis da sobrevivência, exemplos trágicos do darwinismo social, são muito mais numerosos do que os relativamente escassos bons alunos das escolas de elite e, portanto, suas presenças nas universidades públicas devem funcionar como um aditivo à dinâmica indolente que se esparrama pelas salas de aula do ensino superior atualmente.

Portanto, se é a bandeira da meritocracia que levantam aqueles que se opõe à política de cotas sociais nas universidades, é em nome da mesma bandeira (da qual já manifeste minha discordância) que eu defendo as cotas. Lamentavelmente, porém, justamente no estado mais rico do país, com as melhores condições de universalizar a educação e o conhecimento, os seguidos governos conservadores do PSDB vêm se opondo a aceitar as cotas em suas universidades, criando expediente diversionistas, desconsiderando as notas do ENEM, motivados pelo mesquinho interesse partidário (de não reconhecer mérito na política federal) e pelo ranço preconceituoso de uma elite que, sejamos francos, se enoja das classes subalternas.

Mérito neles! Que venham as cotas.