28.10.09

nos tempos de Marx

Iniciaram-se hoje (28/10) as sessões dos Seminários do IPECH/FACAMP dedicadas ao estudo de Marx. A partir de uma esclarecedora exposição do Prof. Mariucci, foram debatidas questões interessantes sobre o ambiente político e intelectual que cercava o jovem Marx.

De forma muito sintética, percorremos o seguinte itinerário:

(1) Naquela primeira metade do Século 19, a tensão que inflamava alguns movimentos políticos em Paris e em outros poucos centros urbanos da Europa, refletia a coexistência de diferentes modos de produção, sem que houvesse a clara predominância social de nenhum deles. Na periferia do sistema, em países como o nosso, o excedente produtivo era capturado através de mão-de-obra escrava. Em algumas nações européias (principalmente da Europa Central) persistiam regimes de servidão, associados à acumulação mercantil comandada pelos soberanos. Na França, predominavam os produtores individuais e, na Inglaterra, ganhava corpo a mão-de-obra assalariada.

(2) Evidentemente, nesse ambiente heterogêneo vicejavam tensões e conflitos entre os diferentes grupos de interesse (corporações de artesãos, camponeses autônomos, membros das cadeias produtivas dos sistemas de "putting-out", industriais manufatureiros, comerciantes urbanos, entre outros), o que permitiu o florescimento de variados movimentos contestatórios.

(3) É no bojo desse processo de efervescência política que Marx e Engels lançaram então seus escritos de 1845/46 (A Ideologia Alemã, Teses sobre Feuerbach) e 1848 (Manifesto do Partido Comunista) propondo a revolução comunista e acreditando na aliança tática com outros movimentos que se opunham à dominação aristocrática que ocupava os Estados europeus. Entre as forças aliadas, enxergavam desde a burguesia liberal, os coletivistas inspirados em Proudhon, até os socialistas cristãos.

(4) Contudo, o fracasso dos processos revolucionários de 1848 irá dissipar da utopia marxista as idéias de alianças com outros movimentos de contestação à ordem, fortalecendo o seu entendimento de que a revolução comunista deveria ser uma decorrência histórica das tendências contraditórias da acumulação capitalista e que, portanto, deveria se dar no centro do sistema, onde - por força do capital - o processo de trabalho já tivesse sido coletivizado e a classe proletária já constituísse a força produtiva predominante.

Sobre estes pontos, cabe resgatar algumas idéias-chave colocadas pelos professores Fernando Novais, Belluzzo e João Manuel, com as quais fica mais fácil navegar pelo difícil século XIX:

Para o Prof. Fernando Novais, é importante ter sempre em mente que Marx não era um historiador, nem escreveu sobre a história. Analisou a história para construir uma teoria do Regime do Capital, buscando a gênese da acumulação primitiva nos tempos remotos da industrialização inglesa. Isso não significa que o capitalismo estivesse presente desde então. Pelo contrário, entre os séculos 15 e meados do Século 19, há o predomínio do capital comercial autônomo e a produção preponderante é a do produtor individual. Até o advento da IIª Revolução Industrial não cabe falar em generalização da produção através de mão-de-obra assalariada.

Conforme JMCM, Marx é fundamentalmente um teórico do capital e talvez, brinca o Professor, um "historiador do futuro". Seus textos foram escritos em uma sociedade profundamente marcada pelo passado e sua genialidade está justamente no fato de conseguir antever, através da análise dos processos históricos ainda em gestação, os movimentos futuros do capitalismo.

E, mais uma vez segundo F. Novais, os escritos políticos de Marx são, antes de mais nada, uma aposta na classe proletária - derrotada em 1848 - e que, por isso, constituem a última utopia iluminista do pensamento ocidental - utopia, contudo, imanente. Ou seja, a ser realizada não através da transcendência, mas como decorrência das forças dinâmicas que são subjacentes à lógica de acumulação capitalista.

Finalmente, JMCM falou da importante biografia escrita por Jacques Atalli: Karl Marx ou o Espírito do Mundo. Os detalhes da vida de Marx são peças importantes para compreender seu pensamento. Sua vivência como estudante de filosofia na Alemanha, sua militância política na França e sua reflexão econômica na Inglaterra parecem pistas bastante evidentes da influência da tradição de pensamento de cada um desses países sobre a obra de Marx.

É interessante notar também como Marx se interessou pelas idéias de Darwin e via homologias entre a dinâmica da competição no mundo das espécies e no processo de acumulação de capita

23.10.09

sobre o que não disse Keynes

Na sessão desta semana encerrou-se o capítulo Keynes. Com uma síntese brilhante do Prof. João Manuel - e a despeito da chapuletada que tomei - creio que encerramos estas dez sessões com uma perspectiva sensivelmente mais rica sobre o que pensava e o que motivava esse grande homem público do século XX.

Caminhando sobre um fio de navalha que, a um lado tinha o socialismo, e a outro o utilitarismo econômico, Keynes foi capaz - a um só tempo - de demolir os fundamentos da economia clássica e pregar sobre as possibilidades de transcendência no capitalismo. Com o princípio da demanda efetiva no centro da análise da dinâmica capitalista, Keynes não só destituiu de razão qualquer um que se aventure a acreditar em "forças que conduzem ao equilíbrio" como também eliminou de cena o "problema da escassez", que tanto anima bastardos de lado a lado.

Aos ortodoxos e variantes crentes da racionalidade econômica, Keynes estampou a anarquia que governa as decisões de investir como fator determinante não só das crises e da trajetória errante do capital, mas também da tibieza que, no mais das vezes, leva os capitalistas a se protegerem da incerteza refugando as inversões produtivas.

Aos que apontam o dedo na direção da guerra distributiva (por um produto supostamente escasso) Keynes lembra que, com o crédito, o capital não encontra limites e que, portanto, as possibilidades de abundância são de fato exeqüíveis e portadoras de uma possível sociedade livre do fardo do trabalho.

Evidentemente, por essas, a leitura de Keynes deixa muita gente nervosa e não são raras as vezes em que se questiona a sua obra por supostas omissões. Ele não fala de luta de classes, não avança sobre o formato ou o conteúdo do Estado capitalista, não se dedica ao problema da divisão internacional do trabalho, nem dá bola para a teoria do valor.

Mas, como bem disse o Prof. João Manuel, não cabe cobrar de Keynes ou de qualquer outro grande autor, as explicações para aquilo que ele não tratou. Os avanços teóricos e políticos derivados do pensamento de Keynes são monumentais e não tem cabimento buscar no não dito possíveis óbices ou lacunas de seu pensamento. Além disso, não devemos esquecer que Keynes não foi exatamente um acadêmico. Foi um homem público que circulava ativamente entre várias instâncias da vida: funcionário do tesouro, professor em Cambridge, fazendeiro, especulador financeiro, biógrafo, membro do blummsbury, colecionador de cartas de Newton, amante de balé, patrocinador das traduções de Freud na Inglaterra, amigo e hospedeiro de Wittgenstein.

E é certamente por conta dessa multifacetada dimensão do pensamento de Keynes que sua leitura é especialmente complexa e rica. Treinados que somos, não é fácil evitar os esquemas teóricos ou os recortes ideológicos a tentar enquadrar o fulano.

Pois que venha agora o Karl Marx. É a partir da leitura dele que seguirão as próximas sessões.
E não custa ressaltar que esse percurso, invertendo a cronologia entre os autores, é muito interessante. É como se estivéssemos buscando saber se Marx, afinal, era leitor de Keynes.


19.10.09

ainda sobre...

... o tema explorado no texto abaixo, arrisco uma frase de efeito:

Enquanto para Marx a superação da gramática capitalista passava necessariamente pela destruição dos substantivos que lhe dão sentido, para Keynes a tarefa primordial seria a substituição dos verbos que lhe dão movimento.

15.10.09

a socialização keynesiana


Entre pensadores ditos marxistas não é incomum a tese de que o 'Estado keynesiano' constitui o instrumento último de dominação política da classe capitalista sobre a classe trabalhadora. A administração da demanda através do Estado, na medida em que reduz a ciclotimia do capital e as possibilidades de crise, seria a pá de cal sobre qualquer esperança revolucionária. Nessa perspectiva, com Keynes não haveria transcendência possível no capitalismo.

Mas, a leitura cuidadosa e difícil dos textos de Keynes - e não dos autores keynesianos - não habilita, a meu ver, tais conclusões.

Tanto quanto Marx, Keynes enxergou virtudes e vícios no capitalismo. Suas análises, embora metodologicamente distintas, são muitas vezes convergentes, em especial no que tange aos aspectos cruciais da dinâmica de acumulação capitalista. Por exemplo: em ambos o 'dinheiro' é muito mais do que mero meio de troca, como quer toda a economia ortodoxa. O capitalismo não se resume a um sistema de produção de mercadorias, mas antes de mais nada se trata de um modo de organização social orientado para a acumulação de riqueza monetária (D-D'). Dessa centralidade do dinheiro decorre uma série de disfuncionalidades que, em última instância, promovem as crises e produzem desigualdades sociais inaceitáveis.

Não vou nem tenho competência para destrinchar aqui todo o encadeamento lógico que constitui o argumento de cada um desses excepcionais pensadores da economia política. O que me interessa é apenas refletir um pouco sobre o desfecho imaginado por cada um daqueles autores, à luz das leituras que temos feitos nos Seminários do IPECH.

Marx, como bem sabemos, imaginava que após cumprirmos uma etapa de avanço das forças capitalistas - cuja tarefa histórica seria liberar gradativamente a classe proletária do fardo do trabalho - deveríamos nos deparar com uma grande crise que, por meio de um processo revolucionário, deveria eliminar a propriedade privada, socializando a posse dos meios de produção. A partir de Marx, poderíamos dizer, portanto, que o fim da exploração do trabalhador pelo capital se daria quando fosse suprimida a propriedade privada. E, por isso, para parte dos marxistas, a mediação estatal só faria retardar o processo de esgarçamento capitalista.

Keynes, por seu turno, que esgrimia com a ortodoxia clássica e não com Marx, via na suposta harmonia dos mercados uma falácia teórica insustentável ante a mera observação da realidade. Crítico do fascínio que o dinheiro produz em nossa sociedade, seja por seus aspectos economicamente disruptivos, seja por sua dimensão moral, mas descrente de uma alternativa que suprimisse o individualismo, Keynes não se anima com a utópica transposição para outro sistema, a ser habitado por espíritos talvez de outra natureza que não a humana.

Sua utopia é significativamente mais modesta, mas nem por isso de fácil execução. Ao invés da supressão do capitalismo ou da destruição de seus fundamentos, Keynes mira o feixe de nervos que lhe movimenta o corpo e propõe intervenções cirúrgicas profundas que imobilizem os espasmos epilépticos do bicho. Dito de outro modo: ele retira o foco da questão da propriedade dos meio de produção, concentrando-se sobre a natureza das decisões de uso do capital. Decidir onde, quando e quanto investir é uma decisão importante demais para ficar à mercê de escolhas privadas. Sob a anarquia do mercado, os donos do capital tendem a se refugiar da incerteza represando (tornando escasso) o capital, promovendo desemprego, sempre, e crise, às vezes.

Portanto, a utopia keynesiana persegue a socialização das decisões de investir. Não é contra a posse da riqueza que ele direcionará seus canhões, mas antes contra o poder de determinação da renda que, na ausência de uma coordenação soberana, fica a cargo dos erráticos e conservadores detentores da riqueza velha.

PS: para uma melhor reflexão sobre as motivações de Keynes, reproduzo abaixo um trecho do Capitulo 24 da "Teoria Geral" [p.345,346]:

"... parece improvável que a influência da política bancária sobre a taxa de juros seja suficiente por si mesma para determinar um volume de investimento ótimo. Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada. Mas, fora disso, não se vê nenhuma razão evidente que justifique um socialismo do Estado abrangendo a maior parte da vida econômica da nação. Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado o que lhe compete. Ademais, as medidas necessárias de socialização podem ser introduzidas gradualmente sem afetar as tradições generalizadas da sociedade.

(...) Os controles centrais necessários para assegurar o pleno emprego exigirão, naturalmente, uma considerável extensão das funções tradicionais de governo. A par disso, a própria teoria clássica moderna chamou a atenção sobre as várias condições em que pode ser necessário refrear ou guiar o livre jogo das forças econômicas. Todavia, subsistirá ainda uma grande amplitude, que permita o exercício da iniciativa e responsabilidade privadas. Nesse domínio, as vantagens tradicionais do individualismo continuarão ainda sendo válidas.

Paremos um momento para recordar essas vantagens. Em parte são vantagens de eficiência — as vantagens da descentralização e do jogo do interesse pessoal. Do ponto de vista da eficiência, as vantagens da descentralização das decisões e da responsabilidade individual são talvez maiores do que julgou o século XIX, e a reação contra o atrativo do interesse pessoal talvez tenha ido demasiado longe. Porém, acima de tudo, o individualismo, se puder ser purgado de seus defeitos e abusos, é a melhor salvaguarda da liberdade pessoal, no sentido de que amplia mais do que qualquer outro sistema o campo para o exercício das escolhas pessoais. É também a melhor salvaguarda da variedade da vida, que desabrocha justamente desse extenso campo das escolhas
pessoais, e cuja perda é a mais sensível de todas as que acarreta o Estado homogêneo ou totalitário."

12.10.09

eis que: o empirismo inglês


Continuamos dedicando tempo e tutano à leitura de A Teoria Geral de Keynes. Trate-se de um privilégio poder pensar com vagar e com a ajuda de boas cabeças sobre a difícil "TG" de Keynes.

Digo difícil não só porque o livro é realmente pesado e exige um razoável domínio da teoria econômica "clássica", mas também porque ao longo de sua argumentação Keynes não explicita suas motivações, reservando apenas o capítulo final para sugerir que o mundo que resulta de sua crítica em nada parece com a tradição 'clássica'. Esta estratégia dá margem não só a ambiguidades, como essas autorizam uma leitura 'conservadora' do livro, que, em última instância, considera suas críticas apenas como uma "chamada à realidade" - incorporados alguns mecanismos de correção das disfunções pontuais no funcionamento dos mercados, o equilíbrio e a racionalidade econômica seriam restaurados, o mundo se salvaria das crises ou do equilíbrio com sub emprego e a Keynes restaria a condição de um "crítico construtivo".

Alternativamente, a tarefa que nos cabe é ler a "TG" levando em conta a visão de mundo de Keynes, não só a partir do famoso capítulo 24, mas, principalmente, seus outros escritos - alguns já mencionados em posts anteriores - e o ambiente filosófico da Inglaterra de sua época.

Neste percurso, com o auxílio do livro 'Keynes and His Batlles", do sociólogo canadense Gilles Dostaler, fica cada vez mais claro que uma das chaves fundamentais para compreender os textos de Keynes é a sua formação junto ao empirismo inglês.

E aí, meus caros, tenho descoberto o quanto passei ao largo do assunto durante minha errática vida acadêmica. Creio que por conta da forte influência francesa na constituição das universidades brasileiras, o pensamento filosófico inglês é tratado, em geral, de modo superficial e preconceituoso. No estudo das ciências humanas, tenho a impressão de que navegamos pelo materialismo ou pelo estruturalismo - e suas derivações pós-modernas - mas não me lembro de ter topado consistentemente com a matriz de pensamento inglês, seja em sala de aula, seja como objeto de estudo de algum colega.

Em economia, claro, lemos muito os economistas ingleses, mas o fazemos atentos apenas a título de conhecer a genealogia formal do mainstream econômico.

É uma pena. Me parece que as possibilidades abertas pelo empirismo inglês permitem trabalhar em ciências humanas, e talvez em especial no pensamento econômico, de maneira mais arejada, desvencilhada do peso formal dos axiomas ou das premissas que engessam a tradição 'clássica'. Como disse o Prof. Belluzzo, sob a perspectiva de Keynes o capitalismo (ou a economia) deve ser investigado em seus processos e não em seus fundamentos.

É isso! Bingo.
Espero que nas próximas sessões e com novas leituras possamos avançar nessa toada.

Obs: na imagem acima, a estátua do Almirante Nelson, herói inglês na Batalha de Waterloo.

2.10.09

keynes e o chega-pra-lá nos "clássicos"


Ná última sessão dos Seminários do IPECH, coube ao Prof. Belluzzo tratar do tema: "Os clássicos e Keynes" - "clássicos", no caso, são os predecessores de Keynes, economistas que no fim do século XIX e início do XX constituíram as bases da ortodoxia econômica.

O mote de Belluzzo para tratar do assunto foi encontrar os pontos de ruptura de Keynes em relação àquela linhagem clássica. Numa primeira aproximação do problema, podemos dizer que Keynes bateu de frente com três dos pilares cruciais da arquitetura ortodoxa. são eles:

1) A Supremacia do Indivíduo: ao longo de sua obra, Keynes rechaça a idéia de "escolha racional" ou de "indivíduo maximizador", conceito herdado do utilitarismo e que está no cerne do suposto automatismo dos mercados e da consequente 'harmonia de interesses' (equilíbrio geral) que, em última instância, faria jus à proposição de que os mercados são capazes de fazer coincidir os benefícios privados com o bem comum. Para Keynes, este indivíduo maximizador simplismente não existe, seja porque a racionalidade instrumental/calculadora é ineficaz e insuficiente para lidar com a incerteza radical sobre a qual se apóiam as decisões econômicas - "o passado é irrevogável e o futuro incognoscível", embora a enorme maioria dos economistas insista no inverso: prescrevem sobre o futuro e se esquecem das lições da história - seja porque, ante aquela insuperável incerteza, os agentes econômicos tendem a decidir através do mimetismo, o que amplifica de maneira dramática a instabilidade do sistema e introduz na dinâmica capitalista um fator de inescapável ruptura: a negação da crise será sempre a ante-sala da crise, i.e., é porque todos acreditam estar diante de um cenários seguro que todos tomam posições sistemicamente insustentáveis e produzem a crise.
Em suma, Keynes retira o indivíduo do centro do debate econômico, indicando que a racionalidade relevante para se compreender a dinâmica econômica deve ser buscada no "comportamento social da maioria" (que se comporta como manada) e que, portanto, o bem comum deverá resultar da construção de conveções - ou de consensos - nas chamadas instituições intermediárias da sociedade (acima dos indivíduos e do mercado).

2) A Lei de Say: fundamento da economia clássica, dizia que a poupança prévia é condição para o gasto (investimento e consumo). Keynes "detona" esta relação causal, invertendo a determinação. Ou seja, é o nível de gasto (especialmente em investimentos) que criará as condições concretas para a realização da renda e, consequentemente da poupança. Esta inversão, que pode soar estranha ou contra-intuitiva para o indivíduo que gasta o que ganha, decorre dos seguintes fatores: do sistema de crédito (que autoriza o gasto antes da renda) e do fato de que será a expectativa de lucro em um futuro incerto que determinará o montante de investimento e que, portanto, sancionará (ou não, depende da aposta dos outros) a renda esperada. Esta "inversão", que para o leigo pode parecer uma tecnicalidade, é crucial para a perspectiva Keynesiana. É por conta desse recorrente risco de inadequação entre a oferta (determinada pelo volume de investimentos) e a demanda agregada que o capitalismo tende, não só a tropeçar em sucessivas crises, como a rodar com o freio de mão puxado, isto é, abaixo do pleno emprego.

3) A moeda neutra: esse é outro pilar mítico da ortodoxia, que considera o dinheiro apenas como um facilitador das trocas mercantis. Dessa perspectiva, o sistema capitalista teria como mola-mestra a produção de bens, impregnados de utilidades que satisfazem as nossas necessidades. Lembrando da supremacia do indivíduo, a idéia aqui é a de que partindo do cálculo individual e maximizador, se erigiria um mercado que seria abastecido pela produção de bens. Ora, mas como bem sabemos desde Marx, ou quando olhamos pela janela, o que move o capitalista é a possibilidade de acumulação, a imperiosa necessidade de fazer seu dinheiro gerar mais dinheiro (D-D'). Portanto, não é nada razoável construir uma teoria econômica que suponha o dinheiro apenas como um acessório mediador da dinâmica capitalista. O dinheiro é a mais importante das mercadorias, o fim último do capitalismo. Sua posse não é transitória ou instrumental, mas constitutiva e determinante dos fluxos de renda que fazem a dor e a delícia do capitalismo.

A respeito dessa centralidade do dinheiro, e lembrando da presente crise internacional, o professor Belluzzo construiu uma frase brilhante:

"Quando tudo vai bem, todas as mercadorias são dinheiro; quando tudo vai mal, o dinheiro é a única mercadoria"

Tomadas em conjunto, as fraturas promovidas pelas idéias de Keynes aos fundamentos da economia clássica são definitivas e não deveriam deixar qualquer dúvida quanto à insustentável fé nas leis de mercado ou às proposições ortodoxas. Qualquer um, minimamente aparatado e intelectualmente honesto deveria reconhecer a força dos argumentos de Keynes e a ruptura que produz no debate econômico.

Curiosamente, contudo, não só Keynes foi esterilizado pelos seus sucessores, como, o que é mais grave e impressionante, é que a teoria neoclássica, com aqueles mesmos e velhos pés-de-barro, continua fazendo a cabeça da grande maioria dos governantes e economistas ao redor do mundo.

Nota: durante a exposição, Belluzzo chamou a atenção para o fenômeno da crescente autonomia da variável consumo na determinação da renda. Com o avanço do Estado de Bem Estar Social e as inovações financeiras que permitiram transformar a riqueza das famílias em lastro para um endividamento inédito das mesmas, o consumo ganha ritmo próprio, tornando ainda mais incerto o horizonte econômico e, consequentemente, mais vulnerável a crises a dinâmica capitalista. Noutros termos, embora Keynes não tivesse considerado o consumo como uma variável autônoma - nem poderia, àquela época - seus argumentos quanto à instabilidade crônica do capitalismo são agora tão ou mais pertinentes.