15.10.09
a socialização keynesiana
Entre pensadores ditos marxistas não é incomum a tese de que o 'Estado keynesiano' constitui o instrumento último de dominação política da classe capitalista sobre a classe trabalhadora. A administração da demanda através do Estado, na medida em que reduz a ciclotimia do capital e as possibilidades de crise, seria a pá de cal sobre qualquer esperança revolucionária. Nessa perspectiva, com Keynes não haveria transcendência possível no capitalismo.
Mas, a leitura cuidadosa e difícil dos textos de Keynes - e não dos autores keynesianos - não habilita, a meu ver, tais conclusões.
Tanto quanto Marx, Keynes enxergou virtudes e vícios no capitalismo. Suas análises, embora metodologicamente distintas, são muitas vezes convergentes, em especial no que tange aos aspectos cruciais da dinâmica de acumulação capitalista. Por exemplo: em ambos o 'dinheiro' é muito mais do que mero meio de troca, como quer toda a economia ortodoxa. O capitalismo não se resume a um sistema de produção de mercadorias, mas antes de mais nada se trata de um modo de organização social orientado para a acumulação de riqueza monetária (D-D'). Dessa centralidade do dinheiro decorre uma série de disfuncionalidades que, em última instância, promovem as crises e produzem desigualdades sociais inaceitáveis.
Não vou nem tenho competência para destrinchar aqui todo o encadeamento lógico que constitui o argumento de cada um desses excepcionais pensadores da economia política. O que me interessa é apenas refletir um pouco sobre o desfecho imaginado por cada um daqueles autores, à luz das leituras que temos feitos nos Seminários do IPECH.
Marx, como bem sabemos, imaginava que após cumprirmos uma etapa de avanço das forças capitalistas - cuja tarefa histórica seria liberar gradativamente a classe proletária do fardo do trabalho - deveríamos nos deparar com uma grande crise que, por meio de um processo revolucionário, deveria eliminar a propriedade privada, socializando a posse dos meios de produção. A partir de Marx, poderíamos dizer, portanto, que o fim da exploração do trabalhador pelo capital se daria quando fosse suprimida a propriedade privada. E, por isso, para parte dos marxistas, a mediação estatal só faria retardar o processo de esgarçamento capitalista.
Keynes, por seu turno, que esgrimia com a ortodoxia clássica e não com Marx, via na suposta harmonia dos mercados uma falácia teórica insustentável ante a mera observação da realidade. Crítico do fascínio que o dinheiro produz em nossa sociedade, seja por seus aspectos economicamente disruptivos, seja por sua dimensão moral, mas descrente de uma alternativa que suprimisse o individualismo, Keynes não se anima com a utópica transposição para outro sistema, a ser habitado por espíritos talvez de outra natureza que não a humana.
Sua utopia é significativamente mais modesta, mas nem por isso de fácil execução. Ao invés da supressão do capitalismo ou da destruição de seus fundamentos, Keynes mira o feixe de nervos que lhe movimenta o corpo e propõe intervenções cirúrgicas profundas que imobilizem os espasmos epilépticos do bicho. Dito de outro modo: ele retira o foco da questão da propriedade dos meio de produção, concentrando-se sobre a natureza das decisões de uso do capital. Decidir onde, quando e quanto investir é uma decisão importante demais para ficar à mercê de escolhas privadas. Sob a anarquia do mercado, os donos do capital tendem a se refugiar da incerteza represando (tornando escasso) o capital, promovendo desemprego, sempre, e crise, às vezes.
Portanto, a utopia keynesiana persegue a socialização das decisões de investir. Não é contra a posse da riqueza que ele direcionará seus canhões, mas antes contra o poder de determinação da renda que, na ausência de uma coordenação soberana, fica a cargo dos erráticos e conservadores detentores da riqueza velha.
PS: para uma melhor reflexão sobre as motivações de Keynes, reproduzo abaixo um trecho do Capitulo 24 da "Teoria Geral" [p.345,346]:
"... parece improvável que a influência da política bancária sobre a taxa de juros seja suficiente por si mesma para determinar um volume de investimento ótimo. Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada. Mas, fora disso, não se vê nenhuma razão evidente que justifique um socialismo do Estado abrangendo a maior parte da vida econômica da nação. Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado o que lhe compete. Ademais, as medidas necessárias de socialização podem ser introduzidas gradualmente sem afetar as tradições generalizadas da sociedade.
(...) Os controles centrais necessários para assegurar o pleno emprego exigirão, naturalmente, uma considerável extensão das funções tradicionais de governo. A par disso, a própria teoria clássica moderna chamou a atenção sobre as várias condições em que pode ser necessário refrear ou guiar o livre jogo das forças econômicas. Todavia, subsistirá ainda uma grande amplitude, que permita o exercício da iniciativa e responsabilidade privadas. Nesse domínio, as vantagens tradicionais do individualismo continuarão ainda sendo válidas.
Paremos um momento para recordar essas vantagens. Em parte são vantagens de eficiência — as vantagens da descentralização e do jogo do interesse pessoal. Do ponto de vista da eficiência, as vantagens da descentralização das decisões e da responsabilidade individual são talvez maiores do que julgou o século XIX, e a reação contra o atrativo do interesse pessoal talvez tenha ido demasiado longe. Porém, acima de tudo, o individualismo, se puder ser purgado de seus defeitos e abusos, é a melhor salvaguarda da liberdade pessoal, no sentido de que amplia mais do que qualquer outro sistema o campo para o exercício das escolhas pessoais. É também a melhor salvaguarda da variedade da vida, que desabrocha justamente desse extenso campo das escolhas
pessoais, e cuja perda é a mais sensível de todas as que acarreta o Estado homogêneo ou totalitário."
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