18.8.13

Brisa Certa

Na medida em que vai decantando o processo de catarse social que ganhou as ruas do país em junho passado, restam alguns espasmos de indignação expressos na síntese radical da tática Black Bloc.
Afinal, quem são esses caras?
Analistas de variadas cepas se esforçam para encaixar “os caras” em seus esquemas de interpretação do mundo, frequentemente reservando a eles o recanto das ovelhas negras.
Não parece mesmo fácil decifrar essa moçada que, desde logo, não se considera sequer como um grupo homogêneo ou um ‘movimento’, mas tão somente uma tática efêmera, uma combustão espontânea do tal ‘sentimento difuso de indignação’.
Pois bem, apesar de muito já ter sido dito a respeito, arrisco um tanto mais.
Tomemos emprestado o veio aberto pelo Prof. Belluzzo em artigo recente na Carta Capital(24/06). O dito sentimento de indignação resultaria em última instância de nossa condição de “condenados à liberdade”. Desde que em algum momento da história remota fomos fisgados pelo ideal da transcendência libertária, lutamos e nos acotovelamos obcecados pela miragem da autodeterminação do indivíduo, a mãe das utopias.
Se assim for – e acredito que seja – estamos também condenados a rechaçar toda e qualquer interpretação de nossa realidade que carregue algum traço normativo. Tal como um adolescente frente à autoridade, vivemos uma cruzada secular de rejeição a enredos que de alguma forma resultem na pré-determinação de nossos atos. E é esse precisamente o ethos que caracteriza a esquerda: a crítica radical e a negação das certezas.
Pois é nesse tênue e fugidio veio que navega a intuição dos Black Blocs. Filhos de uma época em que as grandes narrativas já não afloram, de uma cultura que não tem mais tempo, de uma experiência hedonista e utilitária, essa galera prima pelo uso de atalhos e tem pressa de chegar ao cerne: os bancos, os símbolos do alto consumo, a polícia, a mídia, as instituições obstruídas pela norma e pela demagogia.
Claro que não lhes faltam acusações. Dizem alguns que são anarquistas, outros que são fascistas, filhos de uma classe média sem norte, narcisos em busca de sentido, ou apenas consumidores frustrados.
Não creio. Se bem observarmos, nas manifestações desses hereges de nossa época as bandeiras são todas “brisas certas”, como usam dizer. Apontam suas câmeras e marretas aos nódulos desse sistema que tudo devora. E surpreendentemente, ao contrário dos tais coxinhas ou de udenistas de esquerda que, de verde e amarelo, se misturam aos chamamentos da rede Globo, a turba de encapuzados do Black Bloc, caótica ou acéfala, não se voltou contra as instituições que efetivamente representam conquistas sociais, nem tampouco se opuseram aos partidos e governos que enxergam como aliados no processo de transcendência libertária.
Sem postulados, destituídos de normas e cartilhas, não incorrem no erro fratricida que desde sempre fez das facções de esquerda os maiores inimigos das facções de esquerda.
Crítica em estado puro, livre de pretensões iluministas ou teleológicas, a tática Black Bloc é apenas e tão somente esquerda.

Outros artigos interessantes sobre o assunto:
- Vandalismos (Pedro Serrano)
- Black Bloc é a resposta à violência policial (André Takahashi)

29.6.13

mais uma vez, ainda, pelo começo

(esclarecimento necessário: este texto é um auto-plágio de um artigo que publiquei em março de 2004 na revista Caros Amigos. Fiz apenas alguns ajustes pontuais, atualizando as datas e alguns fatos. Infelizmente, tantos anos se passaram e o tema volta a fazer sentido)

Duas ou três semanas de asfalto e vinagre foram suficientes para azedar o sabor de prosperidade econômica que há quase dez anos embalava os brasileiros, o governo e o PT.

Porém, muito mais grave do que as fraturas políticas que a crise traz à tona é que um eventual fracasso do atual governo significará muito mais do que o tropeço de um partido ou de um programa político econômico. Não afetará somente nossa vida daqui por diante, mas marcará drasticamente a nossa vida pretérita, nossos tantos anos de construção de uma alternativa para este país.

Como muitas vezes nos ensina a história, o sentido das coisas, o rumo dos processos sociais e políticos são definidos de frente para trás – de hoje para ontem. São os eventos do presente que magicamente dão sentido às trajetórias e escolhas do passado e essas, por sua vez, só podem ser plenamente compreendidas a partir do seu desfecho. Sem ele, não seriam mais do que eventos fortuitos, largados ao acaso, ao lado de tantos mais.

É como quando damos o primeiro beijo na namorada. Resgatando na memória, identificamos naquela festa da escola, ou naquele olhar no retrovisor, um encanto que só poderia desaguar no grande amor de hoje. Ou também no futebol, quando tabelamos desde o nosso campo de defesa numa triangulação predestinada a encher a rede, num belíssimo gol de placa. Mas, quantos foram as tabelinhas desperdiçadas pelo centroavante fominha? E quantos olhares em quantos retrovisores não passaram de olhares nos retrovisores?

Para que nossa arte, nossa labuta, faça algum sentido, é imprescindível que de algum jeito consigamos conectar o presente a nossas ambições de ontem. Se não para construir o futuro - como gostamos de acreditar - talvez para amalgamar o passado. 

Pois é com isso que o governo atual e a Presidente Dilma estão lidando. Tenhamos participado mais ou menos ativamente da política nos últimos 30 anos, temos que reconhecer que o PT foi o portador da caneta que parecia predestinada a ligar os pontos de nossa história. Os chumbos da ditadura, a luta pelas Diretas-Já, os desenhos do Henfil, a Constituinte do Dr Ulisses, o Lula-lá, o impeachement do Collor, o sufoco do FHC,... todo esse amontoado de vida só comporá um roteiro inteligível se, ao fim, formos capazes de desaguar em algum mar. Aquele leito caudaloso, expressão talvez das duras escarpas que nos acompanharam ao longo do tempo, não deveria terminar assim, absorvido pela areia da costa, empapuçando um mangue que parece infinito.

Sem um mar, não haverá rio, nem córregos, nem nascentes.