17.8.14

financeirização, pero no mucho

Nas últimas semanas, por ocasião das comemorações do 1º de maio, passaram pelo Brasil importantes intelectuais europeus que agitaram o debate a respeito do futuro do trabalho no Brasil e no mundo. Ouvir e debater com figuras como as que aqui estiveram (Guy Standing, Pierre Salama, Gérard Duménil, entre outros) é sempre uma ótima oportunidade para sair da zona de conforto e nos obrigarmos a conhecer outras possibilidades de distribuição das peças no tabuleiro. Por mais que as maravilhas online tenham encurtado as distâncias e facilitado enormemente o acesso ao conhecimento, o tete a tete continua fundamental. É também no cafezinho, nas expressões faciais, nos embates entre palestrante e plateia que se revelam as nuances, os interditos, as ênfases que complementam o pensamento e a visão de mundo de cada autor.
Entretanto, experiências como essas também revelam como o olhar do centro, na maioria das vezes, persiste enviesado, contrabandeando para a periferia esquemas de interpretação com ambições totalizantes que são permeados de preconceitos e conclusões inapropriadas.  Não raro a carapuça não nos veste.
Pois me parece que tenha sido esse o caso com as ideias que trouxe na bagagem o ilustre Pierre Salama. Importante crítico da mundialização financeira, Salama esteve no Brasil e na América Latina a fim de difundir seus estudos sobre os impactos da financeirização na vida de nossotros.
O tema da financeirização é, sem dúvida, inescapável a quem queira compreender os diversos aspectos das transformações que se processam na dinâmica de acumulação capitalista ao redor do mundo, à qual nenhuma nação pode escapar. A pressão exercida pela classe dos acionistas em um ambiente econômico global aberto, cada vez mais instável e incerto, encurta dramaticamente o horizonte temporal para os investimentos produtivos, em prejuízo da produção, do emprego e das políticas nacionais. Sob o efeito da ampliação da concorrência intercapitalista em escala global, a exploração do trabalho se intensifica e os casos de regressão social se multiplicam, sem que ninguém saiba ao certo como resistir à dieta do capital.
Salama chegou por aqui imbuído da tarefa de anunciar a nós, brasileiros, que é chegada a 25ª hora: após a crise de 2008, a financeirização estaria finalmente aterrizando em nossas paragens e com ela emerge um conjunto de obstáculos por demais complexos para serem enfrentados pelo Estado Nacional. A prova? A minguada tração macroeconômica que se revela no Brasil desde 2011. Segundo ele, estamos experimentando, com algum atraso, a mesma hipertrofia dos acionistas que há algum tempo empurra a Europa e outras nações desenvolvidas para a estagnação.
Será?
Será que uma suposta mudança de comportamento dos acionistas ou dos CEOs das empresas que atuam no Brasil poderia ser a causa de nosso baixo dinamismo? Não caberia antes perguntar se alguma vez na história do Brasil nosso desenvolvimento esteve associado ao “animal spirit” da classe capitalista? Aliás, rigorosamente, é possível encontrar uma classe capitalista em nosso país?
Até onde sei, o capitalismo brasileiro prescindiu - não por gosto, mas por precisão - do “burguês empreendedor” e foi sempre um artifício gestado e embalado a duras penas pelo Estado Nacional. Assim, não parece muito razoável invocar a perda do que nunca tivemos como fator explicativo dos nossas atuais dificuldades econômicas.
Em realidade, a mediocridade de nossas taxas de investimento e de crescimento do PIB resulta, antes de tudo, de problemas muito mais concretos e evidentes: a manutenção de uma taxa de câmbio valorizada e de uma taxa de juros proibitiva que, em um só tempo, deprime o consumo, inviabiliza o investimento e diminui a envergadura da ação fiscal.
É certo que em defesa dos argumentos de Salama, alguém poderá dizer que esse arranjo macroeconômico que sabota o desenvolvimento brasileiro atual decorre, em última instância, da pressão política exercida pela classe rentista sobre o governo de plantão. É verdade, sem dúvida a causa é essa, mas isso não pode ser interpretado como “financeirização”, nem como uma proeminência do mercado de capitais sobre as outras formas de financiamento da acumulação capitalista. Para bem ou para mal, talvez estejamos ainda em uma etapa anterior do desenvolvimento.
As contradições e disfuncionalidades de nossa macroeconomia são, essencialmente, expressões de um arranjo político cujo centro de gravidade é ainda o patrimonialismo, sustentado sem cerimônia por uma elite econômica que sempre teve grande aversão ao risco capitalista e não abre mão dos ganhos fáceis obtidos por meio de instrumentos jurídicos lastreados em receitas fiscais (títulos da dívida pública; contratos de concessão; contratos de fornecimento e prestação de serviços ao setor público).
A financeirização, portanto, é ainda um aspecto marginal em nosso problemático desenvolvimento, útil para explicar diversas inovações gerenciais que afetam negativamente as relações de trabalho, mas que não se traduz - pelo menos por ora - em causa fundamental de nossa perda de dinamismo.
Muito pelo contrário, o Brasil talvez seja um contraexemplo que deveria servir de inspiração para aqueles que se assustam com o apagamento do Estado Nacional. Na contramão de boa parte do mundo desenvolvido, temos conseguido manejar as políticas públicas com razoável soberania e, só não o fazemos melhor, por conta do arcaísmo da política doméstica, muito mais próxima do Brasil colônia do que das impessoais finanças internacionais do século 21.
Em tempo: nos dias que vão, é sempre prudente guardar alguma distância dos argumentos por demais internacionalistas. É com eles que a extrema esquerda costuma confraternizar com o ultraliberalismo econômico, em prejuízo dos projetos nacionais.

Este artigo foi publicado originalmente no site da Fundação Perseu Abramo, em 19/05/2014
http://novo.fpabramo.org.br/content/financeirizacao-pero-no-mucho

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