Nas últimas semanas,
as ideias apresentadas por Thomas Piketty em seu livro Capital in the twenty-first century se espraiaram em ritmo viral pelas
redes da gente que dialoga sobre os temas econômicos ao redor do mundo. Muitas
resenhas foram escritas, críticas pertinentes, louvações justas, a ponto de
Paul Krugman ter afirmado que se trata de “um livro que
vai mudar muito a maneira como pensamos a sociedade e o modo como fazemos
economia“. Oxalá!
Como entender o enorme alvoroço provocado pelo livro de Piketty, esse pacato professor da Paris School of Economics, afinado com a ortodoxia econômica, Phd em Harvard e membro do Partido Socialista Francês?
Como entender o enorme alvoroço provocado pelo livro de Piketty, esse pacato professor da Paris School of Economics, afinado com a ortodoxia econômica, Phd em Harvard e membro do Partido Socialista Francês?
Certamente uma das
razões do entusiasmo decorre do colossal conjunto de dados sobre a desigualdade
da riqueza e da renda que foram reunidos no livro e que jamais tinham sido
expostos com tal amplitude à luz do dia – apesar de imaginados à sombra e
sentidos nas ruas.
As conclusões que
Piketty tira dos dados e as recomendações que faz, embora meritórias e certamente
necessárias – como a utópica taxação da riqueza ao nível planetário e a defesa
do controle de capitais – são, em certa medida, de uma singeleza que chega a
ser intrigante. A começar pelo fato de que o autor, tal qual um contabilista de
grande envergadura, mira apenas os resultados agregados da distribuição do
produto e da renda ao longo da história do capitalismo, passando ao largo do problema
central: o caráter disruptivo e incerto da dinâmica da produção e da acumulação.
Embora ele reconheça, ao analisar as séries históricas, que o capitalismo só conseguiu
sobreviver até aqui (transformado e reformado) graças a profundos e violentos choques
exógenos que marcaram o século XX, dá de barato que o capitalismo no século XXI
tende a seguir uma trajetória monótona e previsível, à qual, por injusta, ele
recomenda reparos.
Não será, pois, por
acidente que dois autores que indiscutivelmente revolucionaram o pensamento
econômico (Marx e Keynes) são lembrados somente de forma acessória no livro de Piketty.
Em sua perspectiva, as crises de reprodução do sistema não aparecem na tela (!)
e o que se deve manejar são apenas os critérios de distribuição, de modo a
ajustar o viés concentrador, que se revela quase como um fenômeno acidental.
Nesse sentido, seu
pensamento estaria mais próximo do direito do que da economia política crítica,
pois se debruça fundamentalmente sobre o tema da propriedade e da partição da
renda e quase nada tem a dizer sobre o engenho que transforma, aliena e
reinventa as forças produtivas sob a égide do capital. Além disso, se por um
lado a perspectiva de Piketty se aproxima à de Keynes quando imagina um
equilíbrio de longo prazo com baixo dinamismo - e que, portanto, não atende à
coletividade (para o primeiro devido à desigualdade e para o segundo devido ao desemprego)
- por outro, em muito se distancia dela no que tange ao enfrentamento do
problema. Enquanto Keynes vai se dedicar a encontrar meios que alterem ex-ante a dinâmica capitalista para que
se alcance uma taxa de crescimento que garanta o pleno emprego, Piketty se debruça
apenas sobre os artifícios ex-post
que poderiam mitigar a desigualdade.
Mas não é apenas na
ausência de diálogo com a teoria econômica crítica que reside a simplicidade do
argumento de Piketty. Outro tema crucial de seu livro é a atual impotência dos
mecanismos meritocráticos, incapazes de garantir uma distribuição de renda mais
equânime e, ao mesmo tempo, permitir a diferenciação dos indivíduos e os
estímulos para o progresso. Segundo ele, dada a crescente concentração da
riqueza no bolso de pouquíssimas famílias, a saudável competição entre os
homens tem sido maculada na origem e, portanto, urge recriar ou instituir mecanismos
políticos – tributos – que reestabeleçam condições mais isonômicas para a
peleja e assim tracionem a meritocracia, recolocando o capitalismo numa toada
mais justa e democrática.
Tudo bem, nada a
objetar, muito pelo contrário. Contudo, é ruidosa a ausência de qualquer menção
ao fato de que a tributação é sim fundamental, não apenas para reconduzir em
condições de igualdade o plantel à arena, mas, essencialmente, porque o produto
e a renda são fenômenos sociais, e como tal devem ser distribuídos. A
apropriação privada, mesmo que sirva de motor para o progresso e esteja na base
da dinâmica que concentra e revoluciona os meios de produção é, desde sempre,
um artifício, e não um desfecho mecânico que corresponde ao grau de
contribuição de cada indivíduo para a coletividade.
Entre as muitas
resenhas do livro de Piketty que estão na praça, apontam-se também outras
simplificações problemáticas de sua abordagem - como, por exemplo, o excessivo
determinismo econômico (cuja expressão maior é reduzir o problema do
capitalismo à persistência de r>g,
onde r é a taxa de retorno do capital
e g é a taxa de crescimento do
produto) e a pouca atenção às especificidades nacionais e históricas dos países
que compõem a economia global. Embora não retirem o mérito do grande panorama
da desigualdade no mundo do capital, essas críticas são, sem dúvida,
pertinentes e reforçam a impressão de que, pelo menos no que tange ao século
XXI, o livro lança mão de um aparato metodológico quase naif.
Mas, vá saber...? Não
seriam esses aspectos táticos de um Piketty estrategista?
Exaltando os valores
republicanos da democracia burguesa (o espectro da Revolução de 1789 ronda as páginas do livro) e sem se desviar do
esperanto mercadista, um mérito inegável de Capital
in the twenty-fist century é ter conseguido semear no centro do gramado
verde do mainstream econômico uma
cisma quase existencialista, qual seja: mesmo que tudo funcione comme Il faut, estará tudo dando errado.
Artigo publicado originalmente na revista Carta Capital, edição nº 800, pp 50-51, 16/05/2014.
http://www.unicamp.br/unicamp/clipping/2014/05/19/colossal-pesquisa-timidas-solucoes.
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