27.11.10

austeridade fiscal é o nome do blefe

Na Folha de hoje, na seção Tendências/Debates (pg A3), dois economistas respondem se o governo Dilma precisa fazer um ajuste fiscal. 

De cara, já há uma certa malandragem na formulação da pergunta. Ao leitor desavisado, pode parecer que o governo brasileiro gasta mais do que arrecada e que, portanto, chegou a hora da austeridade. Ora, desde o primeiro ano de mandato Lula vem colecionando superávitis fiscais primários e, com isso, tem feito cair a relação dívida pública/PIB, cuja dimensão é sempre utilizada pelos economistas de mercado para explicar os juros altos - importante lembrar que Lula derrubou essa relação de 54% para 37% e que hoje, por conta da crise de 2008, ela é de apenas 41%, uma das menores entre as grandes economias mundiais.

Nas respostas, encontramos um economista que diz SIM ao ajuste fiscal - Guilherme da Nóbrega, do banco Itaú - e outro que é colocado do lado contrário - do NÃO - que, na verdade, argumenta que o ajuste fiscal já vem sendo feito e que, além disso, não há relação mecânica entre ajuste fiscal e queda dos juros, como faz crer a maioria dos analistas da velha mídia. É digno de nota o fato de que no duelo, o sujeito que diz SIM é funcionário de um banco, cuja rentabilidade é tanto maior quanto mais elevados forem os juros. No lado do NÃO, temos um professor de economia da Unicamp, escola que se destaca por pensar o desenvolvimento de longo prazo.

Reproduzo abaixo os dois textos (SIM e NÃO). Antes, porém, devo dizer que na argumentação do economista do Itaú há um falseamento gritante da história econômica brasileira. Ao buscar as razões do crescimento da dívida pública e do sucateamento do estado brasileiro, ele omite dois momentos cruciais: a crise da dívida no início dos anos 80, cuja causa foi a agressiva política de juros altos dos EUA, e a sobrevalorização do real na década de 90 - estratégia conhecida como "populismo cambial" - que multiplicou por 13 a dívida pública brasileira. Outro aspecto curioso do argumento do SIM fiscal é que projetam para os anos futuros a situação de 2009 e 2010 e concluem que essa tendência levará ao descontrole das contas públicas. Pura falácia. 2009 e 2010 foram anos atípicos, pois o governo teve que abrir mão de impostos e ampliar gastos para enfrentar a crise externa que solapava o mundo. Como sabemos, houve grande êxito nessa estratégia que, contudo, não se repetirá em 2011 simplesmente porque pelo menos no Brasil já retomamos o curso normal da economia. Vamos aos textos.

Tomei apenas a liberdade de grifar alguns trechos de cada autor. 


NÃO


Não é preciso superavit acima da meta

FRANCISCO LUIZ C. LOPREATO

A aproximação da posse de Dilma Rousseff trouxe de volta o coro a favor de forte ajuste fiscal.
A alegação dos que defendem essa tese é a de que a política fiscal do governo Lula colocou em risco as contas públicas e pressionou a inflação, ou que o aumento substancial do superavit primário implicará forte queda da dívida e dos juros.
Vejamos esses pontos. Primeiro, a situação fiscal é aceitável, bem melhor do que em períodos anteriores, e a inflação pouco acima do centro da meta não parece estar associada à expansão da demanda provocada por excesso de gasto público. Além disso, a dívida pública líquida (41% do PIB) é uma das menores em relação à dos principais países do mundo.
Segundo, a queda acelerada da dívida pública, com o aumento do superavit primário, pode ter efeito positivo na taxa de juros, mas não se deve esperar baixa expressiva enquanto não houver a separação entre o sistema monetário e o de dívida pública. O atual patamar de taxa de juros está atrelado à forma "sui generis" de convivência desses dois mercados.
O problema se arrasta desde o período de alta inflação e, caso não seja eliminado por meio de reformas envolvendo alterações na remuneração da poupança e o provável abandono dos títulos indexados à Selic, dificilmente a taxa de juros cairá além do nível alcançado no período crítico da crise mundial, e as dificuldades de alongar os prazos de financiamento continuarão a existir.
O principal alvo da crítica, na verdade, não aparece de modo explícito. O que de fato se questiona é a decisão do governo Lula de alterar a lógica da política fiscal e a estratégia de desenvolvimento.
O retorno do Estado como ator central na articulação de novas frentes de investimento levou à reestruturação dos instrumentos fiscais e financeiros de apoio à ação do setor público, exigindo o fortalecimento dos bancos de crédito oficiais, o revigoramento das empresas públicas e a ampliação dos incentivos fiscais.
A candidata Dilma apresentou proposta de governo semelhante.
Espera-se que mantenha a posição ativa do Estado e ainda trate de recuperar a força do planejamento e da política industrial. Um ajuste fiscal severo vai contra essas ideias e coloca em risco a continuidade do programa de investimentos.
Mas, por outro lado, é importante que a manutenção do projeto vencedor das eleições não signifique descontrole das contas públicas. Não há esse risco. A provável redução do ritmo de reajustes do salário mínimo trará reflexos positivos no resultado da previdência social, e outros gastos devem seguir o mesmo caminho.
Além disso, a nova equipe econômica já se comprometeu com a estabilidade fiscal e com a redução da dívida pública, mantendo nível adequado de superavit primário.
O valor proposto para o saldo primário (3,1% do PIB) e um crescimento médio da ordem de 5% do PIB garantem a redução sustentada do peso da dívida pública no decorrer do próximo mandato presidencial, sobretudo se vier a ocorrer reforma capaz de dar fim ao entrelaçamento entre mercado monetário e de dívida pública, abrindo espaço para a queda da taxa de juros.
Enfim, o momento da economia brasileira é favorável e não requer a adoção de rígido programa de austeridade fiscal; basta levar adiante a política de defesa do crescimento e sustentar o compromisso de não deteriorar as contas públicas em nome da expansão econômica.

FRANCISCO LUIZ C. LOPREATO é professor do Instituto de Economia da Unicamp e autor do livro "O Colapso das Finanças Estaduais e a Crise da Federação" (editora Unesp, 2002).




SIM

Oportunidade imperdível
GUILHERME DA NÓBREGA

Há muito a se comemorar nos resultados fiscais do Brasil. De maneira inédita na história recente, o governo pode fazer política fiscal anticíclica como resposta a uma grave crise.
Apesar da perda de receita e da queda do superavit primário, preservou-se a solvência. Pode-se até reduzir temporariamente alguns impostos. Havia gordura.
Em 2009, por causa da crise, a arrecadação praticamente não cresceu. Já o gasto continuou a subir, mais ou menos no mesmo ritmo acelerado dos últimos anos. O superavit primário (antes de juros), que até então andava na casa dos 4% do PIB, caiu para 2,1% do PIB.
Em 2010, com a recuperação da economia, a receita felizmente voltou a crescer. O gasto, porém, se acelerou. Não fossem receitas extraordinárias e alguma criatividade contábil, o resultado primário teria se mantido no mesmo nível fraco de 2009. Computados os extras, deve chegar a 3% do PIB.
O novo governo já anunciou a intenção de manter o superavit nesse nível em 2011. Sem receitas extraordinárias e criatividade, porém, só chegará lá se reduzir fortemente o crescimento dos gastos. O esforço, contudo, é necessário e tende a ser bem recompensado.
O conforto que vivemos desde 2009 é resultado de longa e paciente preparação. Se formos ver bem, essa história começa na exaustão fiscal do começo dos anos 80. Ali encerrou-se o ciclo de crescimento tocado pelo setor público nos anos 70, do qual foram protagonistas as empresas estatais, o gasto público, o crédito público subsidiado, a proteção tarifária e as grandes obras.
Quaisquer que fossem os seus méritos, o modelo dos anos 70 deixou uma herança fiscal indesejável -nos números e, principalmente, na precariedade institucional. Sobraram limitadíssimos instrumentos de gestão. Era preciso agir.
Em 1986 criou-se, finalmente, uma secretaria do Tesouro. Por essa época se eliminou o relacionamento privilegiado que o Banco do Brasil tinha com o Banco Central. Depois de idas e vindas, o Ministério do Planejamento se consolidou no papel de gestor orçamentário.
As privatizações eliminaram despesas e simplificaram a gestão. O enxugamento do sistema bancário público revelou alguns esqueletos e evitou muitos outros. A Lei de Responsabilidade Fiscal trouxe capacidade de controle e mais previsibilidade.
Mesmo restando muito a fazer, a construção de conjunto mínimo de instituições fiscais é, sem exagero, uma das mais importantes conquistas de nossa história recente.
Para ela contribuíram sucessivos governos, o Congresso, o Judiciário, a opinião publica. Se não resolvemos todos os problemas, ao menos sabemos onde a maioria deles está. A melhor política fiscal está no centro da transformação que nos deu juros mais baixos, horizontes mais largos, mais produtividade, mais crescimento. Não é pouco.
O novo governo terá, de imediato, a oportunidade de mostrar que faz parte dessa trajetória. A piora fiscal de 2009 era plenamente justificável. A ausência de melhora em 2010 (a não ser pelos eventos extraordinários) criou a dúvida sobre seu compromisso com a história que construímos ao longo desses muitos anos.
Empenhar-se para entregar de fato um superavit primário superior a 3% do PIB, "sem exceções", será fundamental para dar corpo ao discurso oficial, confirmando a natureza anticíclica dos fracos resultados de 2009 e 2010.
No plano conjuntural, contribuirá para desacelerar a economia, reduzindo o risco de inflação e a eventual necessidade de o Banco Central subir juros. De perspectiva mais longa, o compromisso permanente com o nível e a qualidade do gasto público é o caminho para assegurar que o Brasil continuará a se beneficiar de juros mais baixos, horizontes mais largos e estabilidade.
Não é fácil chegar lá, mas a oportunidade de tentar é imperdível.

GUILHERME DA NÓBREGA é economista do banco Itaú Unibanco.



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