26.11.10

uma pergunta sádica

Um amigo de tuiter, por puro sadismo, me pergunta por que o governo simplesmente não abaixa os juros. É!... Por que?

Mui amigo o tal Marcos.

Vamos por partes.

1) A taxa que remunera os títulos da dívida pública - conhecida como taxa de juros selic - é um preço fundamental da economia, pois indica ao mercado (investidores) quanto se pode ganhar sem fazer nada (comprando títulos públicos). Portanto, é um piso para as demais possibilidades de aplicação do capital. Se fôssemos racionais, só colocaríamos nossos dinheirinhos em atividades cuja expectativa de rendimento fossem iguais a "selic + x", sendo que "x" deverá ao menos cobrir o risco estimado para aquela aplicação.

2) Quem define a taxa Selic no Brasil é o COPOM (um comitê formado pelos presidente e diretores do Banco Central), em reuniões periódicas (hoje a cada 45 dias) - rezam os bons costumes que é prudente nomear para as diretorias do Banco Central economistas talentosos com vertiginosas passagens pelo sistema financeiro (grandes bancos, corretoras, FMI).

3) Em tese, o BC maneja a Selic para ativar/desativar a economia. Por um lado, se baixar a Selic, estará reduzindo o custo de oportunidade para outras aplicações, isto é, dirá ao mercado que vale a pena investir em um tanto de modalidades que antes eram consideradas pouco rentáveis ante o dinheiro fácil que ganhavam com os títulos públicos. Com isso fará aumentar a produção, o emprego, a renda e, no limite, os preços.

Por outro lado, quando eleva a Selic, o governo sinaliza ao mercado para sair de outros investimentos e ampliar a compra de títulos públicos - o que, portanto, reduzirá a atividade econômica e, consequentemente, diminuirá a pressão sobre os preços (inflação), além de diminuir a produção, os empregos e a renda.

4) Ora, na teoria econômica ensinada em Atlantis, todos são treinados para construir e interpretar modelos abstratos que procuram mostrar qual o potencial de crescimento econômico que uma determinada economia suporta. Ou seja, quanto dá pra crescer sem que isso implique no surgimento de gargalos que, no limite, farão subir os preços e despertar a inflação.

5) Acrescente-se a essa "ciência" um outro elemento importante: os agentes econômicos, além de racionais, são capazes de aprender com os sucessivos erros dos governos e, portanto, são dotados do que se chama de "expectativas adaptativas". Noutras palavras, o mercado tende a corrigir os excessos cometidos pelas autoridades econômicas, se antecipando e anulando os efeitos de sua mão pesada. Exemplo: o governo reduz os juros de forma exagerada, fazendo a economia crescer para além de sua "potencialidade natural" e, portanto, induzindo um aumento indesejável de preços no futuro. Cientes do exagero, os agentes econômicos tendem então a corrigir seus preços preventivamente, transformando o que era apenas uma hipótese teórica, num fato concreto. Uma profecia autorealizável.

6) Divulga-se tudo isso através de manuais (best-sellers escritos em Atlantis) para que todas as escolas de administração de empresas, cursos de contabilidade, de engenharia e inclusive de economia tenham absoluta clareza das leis que regem a economia.

7) Repercuti-se essas mesmas leis e idéias entre os chamados formadores de opinião, em especial jornalistas econômicos ambiciosos e com baixa auto-estima intelectual.

8) Para legitimar ainda mais o processo, crie um boletim semanal, com um nome do latim, que reúna a opinião de 100 instituições financeiras, para que se possa conhecer o posicionamento médio do mercado e assim referendar as decisões do BC. Claro que, como eles também se formaram pelos livros de Atlantis, as divergências serão mínimas, o risco é zero.

9) Por fim, deve-se organizar uma instituição que ajude a coordenar e disseminar essa ciência entre a sociedade civil. Um nome do latim também ajudará a reforçar o espírito científico (veja organograma aqui, é muito instrutivo). Caberá a essa organização zelar pelo processo de introjeção dos valores dessa ciência, de tal maneira que do pároco ao bancário, do médico ao compositor bahiano, todos tenham clareza da ordem natural das coisas.

10) Pronto. Com tudo isso, não haverá comunista, sindicalista, terrorista, analfabeto capaz de ousar triscar o dedo na mecânica sofisticada que ilumina o nosso caminho para a bem aventurança. A simples menção de desrespeito às regras impessoais do mercado já será prontamente antecipada pelos agentes racionais, tirando a economia do equilíbrio e, portanto, trazendo prejuízos ao desenvolvimento das forças produtivas.

....E no sétimo dia, descanse em paz. Nada poderá ser feito.

Um comentário:

  1. O Marcos é sádico também por ter me incluído na pergunta. Não é que você respondeu? E não é que eu vim ler às 2h30 da matina? Ver tudo reunido assim no mesmo lugar é garantia de pesadelus horribilis. Obrigada assim mesmo... (@marinildac)

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