14.11.10

sobre a porrada de "tropa de elite 2"

Publico hoje uma resenha que o amigo e colega Alessandro Ortuso escreveu sobre o desconforto inescapável provocado pelo filme Tropa de Elite 2. 


A ilustração é do cartunista carioca Carlos Latuff.


Por Alessandro Ortuso

Assisti Tropa de Elite 2. Gostei bastante. Mas explicar porque gostei não é uma tarefa simples. Exige um tempo para a reflexão. Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que o filme em nada fica devendo para qualquer grande produção de Hollywood. Por isso, ele também é bom. Mas isso não parece ser a questão mais importante. Ele é bom, acima de tudo, porque não permite a indiferença. Exige uma opinião. Ainda mais em tempos de eleições marcadas por temas como a corrupção e o nepotismo. Mas, no filme, é muito difícil que nossa opinião se resuma na escolha de um lado ou de outro. Algo impossível, principalmente, para os personagens principais do filme.
            No início, o capitão Nascimento, agora Coronel, diante de uma rebelião de presos em Bangu I tem a chance de eliminar o mal pela raiz. É a justificativa que eles e seus subordinados tanto esperaram para dar fim aos principais lideres do tráfico no Rio de Janeiro. Para isso, basta autorizar a invasão. Uma crueldade covarde dirá o outro lado. Neste caso, um Professor Universitário membro de um grupo internacional de defesa dos direitos humanos. Sendo assim, teríamos, de um lado, o fascismo extremado da direita e, de outro lado, a esquerda que defende os valores da igualdade e solidariedade. Até aí é possível escolher em que lado ficar. Independente de onde esteja o bem ou o mal.
            Mas, o que se segue a partir daí torna as fronteiras indefinidas e os extremos menos distantes. Mas, ainda assim, é impossível a indiferença. Não há mais muro para nos equilibrarmos. Tudo vem abaixo num ritmo alucinante. De fato, tudo que é sólido parece se desmanchar no ar. Caem todas as certezas. Por quê?
            Creio que não podemos, aqui, evitar respostas desagradáveis e indigestas. Isso porque, em última instância, elas tornam evidentes porque nós, como seres humanos, falhamos. Falhamos porque a maneira pela qual decidimos organizar nossas vidas materiais exige uma estruturação social que não deixa espaço para a espontaneidade desinteressada. Porque torna muito difícil uma sociabilidade fora do âmbito utilitário mediado pelo dinheiro. E aqui, não há exageros e nem ficção. Não há esquerda ou direita. Não há outras escolhas possíveis.
            Falo aqui no despotismo do dinheiro. Ganhar dinheiro tornou-se para nós uma exigência cega. Cega, porque não se trata apenas de uma imposição externa. Ela foi internalizada. Cega, porque é algo que acaba tornando-se natural. Os que se acham mais intelectualizados dirão que faz parte da natureza humana. Isso porque, em última instância, é da nossa natureza competir. E, se o critério para definir os ganhadores e perdedores é exclusivamente monetário, porque não afirmar: somos educados pelo dinheiro? Educados para o consumo que o dinheiro permite! As coisas que consumimos falam! Dizem, até para os que não querem ouvir, quem somos ou em que lugar estamos na estrutura social.
            Claro que é sempre melhor estar em cima. Quanto mais alto se estiver na estrutura social mais poder temos sobre os outros. Mas o que é poder? Nada mais do que a capacidade de impor sua vontade sobre os demais. Quem não tem dinheiro obedece, nunca manda. Trata-se de uma hierarquia que prevalece inclusive sobre o poder político. Sobre a lei. Pior, se mistura a ela. Quase sempre a subordinando.
            Esse é justamente o assunto de que trata o filme. Estamos vivendo numa sociedade individualista onde os indivíduos, competindo uns com os outros, disputam poder. Vale dizer, disputam dinheiro. Tudo se complica quando essa lógica invade a esfera do Estado. Porque aí, as fronteiras entre o público e o privado ficam completamente borradas. Tudo é privado. Tudo é dinheiro e poder. E, como o poder se resume na capacidade de controle sobre a vontade alheia, a constituição de uma hierarquia é algo lógico.
            Como mostra o filme, o Governador fica no topo dessa hierarquia. Depois dele, não exatamente nessa ordem, secretários, subsecretários, deputados, comandantes militares, soldados, etc.. Esses, ainda têm a vantagem de usar a burocracia estatal para reforçar seus poderes. Reforçar, principalmente, o poder sobre outras estruturas estabelecidas fora do âmbito do Estado. No caso do filme, fundamentalmente, sobre a empresa ligada ao tráfico de drogas e armas nas grandes favelas do Rio de Janeiro.
            Neste contexto, o Coronel Nascimento, tendo ao seu lado o monopólio da violência, liquidou o tráfico nas favelas cariocas. Matou ou prendeu todas as principais lideranças. Tocou o terror! Fim do problema? Fim da violência nos morros cariocas? Fim da bandidagem? Fim da ilegalidade? Não, muito pelo contrário. Tudo isso se acentuou. No lugar dos traficantes oriundos das próprias favelas, entram as milícias organizadas dentro da estrutura do Estado. Fica impossível distinguir o bandido do policial. Talvez, o único critério adequado seja o lado da grade ocupado por cada um. Fora ou dentro, todos são movidos pela mesma lógica.
            O espaço antes ocupado por membros da comunidade da própria favela é agora ocupado por agentes externos. Um espaço que permite a exploração capitalista de muitas outras empresas além da droga. Falo aqui da venda de bujões de gás, do famoso "gato-net", do comércio de medicamentos, etc.. É tudo parte do "Sistema". O Sistema é impessoal. Não tem endereço fixo. É insaciável. Não tem limites. Não respeita a vida e nem a lei. Não reconhece o Estado.
            A lei é, sempre, um acordo entre vontades iguais em favor do interesse da comunidade. É a restrição de certas liberdades individuais que permitem a vida coletiva. De valores coletivos.  Pois bem. Tudo isso foi varrido do nosso horizonte. O Sistema exige que todos maximizemos nossos interesses individuais. Lembro aqui do sujeito que ganhou uma edição do Big Brother que tinha tatuado em seu braço: maximize-se. Lembro aqui da revista "Você S.A.". Em outras palavras, é o sucesso individual a qualquer preço. Algo que se resume no jargão do mundo dos negócios como empreendedorismo.
            Mas, sem a restrição imposta por valores coletivos, na favela, o empreendedor de sucesso é o traficante. Na política, o corrupto. Na polícia, a milícia. Na mídia, o jornalista inescrupuloso. Na corporação, o executivo. Todos são movidos pela lógica do sucesso individual. Um sucesso que se mede por um único critério: dinheiro. Esse é o "Sistema" tanto citado pelo Coronel Nascimento.
            Esse "Sistema" tem como consequência lógica apenas um cenário: a barbárie. A guerra de todos contra todos. O darwinismo social. A não civilização. A selvageria instintiva. A luta individual pela sobrevivência física. É neste ambiente que devemos tentar entender, já no final do filme, o papel do Coronel Nascimento e do nosso Professor Universitário, agora Deputado. Se, no início era possível escolher de que lado ficar, agora, isso é impossível. Os dois terminam o filme do mesmo lado. Mas que lado é esse que não reconhece direita ou esquerda? Que não tem partido político? Que não tem nome fixo?
            A resposta parece nos mostrar o único caminho de resistência ao "Sistema". É o caminho da defesa da lei. De suas diretrizes mais básicas. Isso porque, em última instância, a lei é o coletivo. A lei é a comunidade. A lei é o Estado que permite a civilização. Respeitar a lei é respeitar o outro. Apesar de toda a violência que segue a trajetória de vida do Coronel Nascimento, é justamente isso que o aproxima do Deputado humanitário. Ambos lutam contra o "Sistema". Ambos resistem ao despotismo do individualismo mediado pelo dinheiro. São movidos por outros valores.
            Neste contexto, a lei tem que valer igual para todos. É preciso prender o traficante, mas também o político corrupto ou o sonegador de impostos. Deve-se punir quem rouba um relógio na praia de Ipanema, como também aquele que para seu carro em lugar proibido ou que fuma maconha nesta mesma praia. Podemos aqui discutir se concordamos ou não com a lei. Principalmente, com essa última que não permite pequenas recusas inofensivas. Mas, qualquer mudança possível precisa ser pensada coletivamente. Não há respostas individuais.
            Só nos resta aqui tentar entender porque o Coronel Nascimento não consegue responder a seguinte pergunta para seu filho adolescente: pai, por que você mata? De fato, uma pergunta incômoda e muito difícil. Nosso Coronel mata porque quer fazer valer a lei, mas mata, fundamentalmente, porque nessa sociedade que beira a barbárie é matar ou morrer. Mata-se para sobreviver. Mata-se, porque, por mais cruel que isso possa parecer, parte da nossa sociedade é "óleo queimado". Vale dizer, pessoas que foram tão massacradas e violentadas pelo "Sistema" que pouco podemos fazer por elas.
            Em outras palavras, como recuperar um sujeito que desde sua infância só pode usar a violência física como arma para sua sobrevivência. Quando adulto, encarcerado, o que se pode fazer com ele? O que prometer?
            Por favor, antes que os mais exaltados se manifestem! Isso não quer dizer que eles devem ser exterminados como quis nosso Coronel Nascimento. Quer dizer, isso sim, que devemos sentir vergonha de nós como seres humanos. Culpa, por sermos capazes de viver cercados de tantas riquezas materiais e não conseguirmos traduzir isso numa sociedade verdadeiramente democrática. Uma sociedade onde seja possível a sociabilidade desinteressada fundada em valores como a amizade e o lúdico.
            Por isso, ao invés das palmas oferecidas ao Coronel Nascimento, deveríamos, na verdade, baixar nossas cabeças para refletir. É isso que queremos? Só isso é possível? É da natureza do homem ser assim? Pensar diferente disso é ser ingênuo ou idealista? Não creio. Acreditar nisso é deixar de acreditar no homem e na humanidade. Acreditar nisso é reconhecer que os filhos das classes médias e ricas também podem vir a ser "óleo queimado". Isso não é privilégio de classe. 

Um comentário:

  1. achei válida sua colocaçao, mas acho um tanto qto incoerente.
    Isso porque da mesma forma q rotula a cegueira pelo dinheiro usa a mesma logica para explicar a solução desse problema como sendo a busca CEGA pela prática da lei.
    Sinceramente, muitas vezes a dita prática da lei, ou mesmo a punição, é injusta, porque muitas vezes não considera o indivíduo nas suas especificidades, muito menos na sua complexidade.
    Nao acho justo punir levando seres humanos a prisões, para lá viverem em ambientes depredados, ou pior,(além disso) servirem de mão de obra escrava de várias empresas em troca da diminuição da pena (sim, pq muitos deles trabalham pra no final da pena receberem nada ou qse nada em troca).

    Pra mim, oq falta é empatia, é se por no lugar do outro. É olhar pro filme - qdo o coronel enche o governador de murro (e qse o mata)- e se perguntar: Quem ali é mais ser humano?
    OS dois são!
    Então, nada, nada justifica a BRIGA CEGA por objetivos, até qdo esses são as leis.
    Pq nelas tb há incoerências.
    Se me perguntar a respeito de uma solução, te direi: Tolerância, educação, amor e respeito. Isso é o q nos falta.

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