23.11.08

pau no homem econômico racional


Creio que já mencionei em algum post anterior que uma das boas consequências da atual crise é o florescimento do debate político-econômico, com espaço para novas e velhas idéias. Sabe-se lá que dias serão estes, mas certamente não são mais de pensamento único.

No embalo da crise, um dos mitos do liberalismo econômico que vai erodindo é o tal indivíduo maximizador (homo economicus), sem o qual a teoria neo-clássica (liberal) não fica de pé.
E não é por menos. Nunca na história deste mundo como nas últimas três décadas se deu tanta corda aos hominhos maximizadores, mas a propalada bem-aventurança que seus espíritos livres e empreendedores deveriam produzir revelou-se um enorme mico a pedir colo ao Estado.

Sobre as peripécias deste ente que dá vida ao liberalismo, recomendo alguns artigos:
primeiro, o do Delfim Netto publicado na Carta Capital que chegou às bancas neste fim de semana;
Vale ler também o artigo do Belluzzo, no site da mesma revista;
Por fim, aproveito para resgatar do baú um artigo que publiquei na Caros Amigos em 2001, que também fala das idiossincrasias do tal (segue abaixo).

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Eu e o Mundo

Taí uma parceria complicada.

Desde muito tempo não tem sido fácil a relação entre o indivíduo e a coletividade - mas suspeito que no capitalismo de hoje este conflito é amplificado para além dos limites da tolerância.

Enquanto vende o peixe da livre escolha, seduzindo nossas almas com a possibilidade de trocarmos as notas que carregamos no bolso pelos nossos maiores sonhos de consumo, o capitalismo nos cobra o trabalho e, mais do que isto, nos impele a crescente especialização de nossas atividades.

É curioso como um sistema que promete o infinito - o império da liberdade - exige de cada um de nós um tal grau de focalização, que corremos o risco de reduzir nosso vínculo social apenas e tão somente a uma única atividade rotineira, especializada e estúpida. Aliás, é bom lembrar que Marx, ao deschavar com seu agudo bisturi as mumunhas da sociedade capitalista, já apontava para esta tendência de progressiva alienação do sujeito.

Com o recente furacão liberal, mais do que nunca a especialização floresce como a grande meta dos viventes. Quanto mais avança a mediação mercantil das relações sociais, mais forte é a pressão pela especialização de nossas habilidades humanas. Gregos ou troianos, freqüentemente nos vemos "planejando nossas carreiras" para que possamos nos tornar ainda mais imprescindíveis ao capital. Obedecendo os sinais do mercado, que joga alpiste para os que se dedicam com afinco e fidelidade a alguma tarefa miúda na divisão social do trabalho, acabamos reduzindo nossa identidade à faceta mais tosca de nossa existência - a da mera reprodução material.

Evidentemente, a divisão social do trabalho, associada aos direitos de propriedade e mediada pelo dinheiro, é uma maneira um tanto engenhosa de se organizar a produção. Na medida em que cada indivíduo subordina sua existência à tarefa que lhe cabe nesta gigantesca organização social chamada sociedade capitalista, é de se esperar que no "conjunto da obra" este arranjo pareça bastante funcional. Não há como negar que, excluindo-se todas as demais dimensões da vida humana, o capitalismo é um eficiente sistema produtor de mercadorias. Não por acaso, desde Adam Smith, muita gente boa (e muito mais gente safada) tem exaltado esta eficiência como forma de alcançarmos o bem-estar geral.

Acontece que, ao contrário do que nos acostumamos a pensar, pertencer ao mundo não se resume ao estreito vínculo profissional que tanto cativamos. Saber pilotar uma mesa de operações cambiais pela manhã e não conseguir apreciar um bife no almoço pode ser até compreensível do ponto de vista da funcionalidade do sistema, mas soa quase ridículo de qualquer outro ponto de vista.
Como seres humanos, dotados de sentidos e curiosidade, somos tentados a cada instante a vasculhar, entender e participar da vida em muitas de suas dimensões e, se não o fazemos, é porque talvez estejamos deixando nossa humanidade em segundo plano, para nos colocarmos cada vez mais a serviço da produção social de mercadorias.

Assim, para além de todos os problemas econômicos e sociais que decorrem do capitalismo, esta dicotomia entre um mundo de desejos que carregamos na cabeça e o barbante tênue da profissão que nos liga à sociedade é talvez uma das maiores angústias da modernidade. Curiosamente, ao mesmo tempo em que proliferam alternativas de consumo e deleite através desta potente máquina produtora de todo e qualquer tipo de mercadoria, nossos interesses tendem a convergir para atividades cada vez mais especializadas e descoladas das outras esferas da vida. Com a vista ofuscada, dedicamos nossos dias a conquistar um horizonte de sonhos que já não sabemos como desfrutar.

Mais uma vez, o capital demonstra sua maestria na arte do ilusionismo, operando a inversão entre o que é anseio e o que é dever e fazendo-nos crer que nos libertamos quando nos sujeitamos.

Publicado originalmente na Revista Caros Amigos, agosto, 2001

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