23.9.10

canavial de gertúlio

Hoje, com um post da companheira Maria Clara:
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Semana triste e cinzenta na campanha eleitoral. Os vídeos de cachorro bravo; os golpistas reclamando de golpe; tudo pelo avesso… 

Vontade de tirar a sombra dos olhos; vôo de memória para um dia ensolarado de junho passado. 
Eu indo de João Pessoa até Recife para pegar um avião, entro no taxi preparada para duas horas de tédio, e o que me acontece é a melhor conversa do ano.

O taxista, paraibano bem-humorado além da conta, ia me fazendo aquele tour básico de taxista levando paulista em cidade bonita (e a paulista lendo no banco de trás). Até que chegamos à rodovia que leva ao Recife.


E eu comecei a ficar meio besta com o tanto de obras na pista, de caminhões com tudo quanto é coisa passando de lado a outro, de galpões industriais na beira da estrada com placas inusitadas - "Centro de Treinamento de Operadores de Máquinas Pesadas"; até hélice de moinho passou na direcção do norte. Surpresa, comentei com o taxista:


- Nossa, que diferente que está isso, que movimentado. Na minha memória aqui era um canavial só … ("… um canavial triste de dar dó, com povo sem rumo passando na beira, os olhos baixos de fome," não disse, só pensei, me vindo as imagens soltas da minha última passagem por ali, quando iam os 1980 e tantos).


Pra quê.
Vira o taxista e me diz:


- Isso era ANTES.
- Antes de quê?
- Antes disso tudo. A senhora sabe.
- Antes do Lula, é?


Como se eu tivesse dado a senha de algum código de cumplicidade, vem em seguida, de chofre, a pergunta dele:


- Professora, a senhora que é do sul, me diga, é verdade que tem gente por lá que NÃO VOTA EM DILMA?


Respondo eu que sim, que era verdade. Muita gente, sim. Sim, gente estudada. E ele:


- Mas eles querem o quê? Que volte tudo a ser como era ANTES?


Pergunto, afinal como era esse antes, e ele me conta.


Da infância na família de cortadores de cana nalguma parte daquele canavial faminto. Do pai com as mãos lanhadas do facão e do feijão nenhum na mesa. Do dia em que resolveu ir pra capital do estado para parar a fome. Da miséria e do horror que passou, menino de doze anos (eu pensando nos meus filhos, o coração apertado). Até que um dia as coisas começaram a melhorar de um jeito... A cidade crescia, hotel novo pra todo lado, ele arrumou um trabalho de porteiro. Daí  resolveu aprender a dirigir, e com os seus contatos de porteiro bem-humorado além da conta, virou taxista com clientela fixa entre os hotéis e a universidade. 


- E o seu pai? (pergunto)
- Quase morreu de alegria quando eu voltei com a papelada pra ele tirar a aposentadoria rural. Me dizia, "meu filho, mas isso é de verdade mesmo?" E chorava, coitado. 


Fomos ficando mais amigos e ele me conta que com todas essas alegrias, a maior que ele tem mesmo é o filho. Que está cursando o ensino médio. E vai pra faculdade depois.


- Pra faculdade, professora! (o orgulho embargando a voz) - e não é só o meu menino não, é essa meninada nova toda. Tudo pra faculdade!


Por essas e outras (diz) é que ele não consegue entender porque tem gente que queira voltar para o ANTES.


Nisso eu, paulistana cinzenta, pessimista sombria, digo ao Gertúlio que, veja bem, tem que ter cuidado, essa gente não está pra brincadeira - vão jogar pesado (e era junho ainda, isso…). Ao que ele me responde:

- A senhora está enganada. Isso não tem mais como voltar pra trás. Isso é que nem começar um foguinho no meio do canavial: ninguém nunca mais consegue apagar.


Chegamos no Recife, eu com a alma lavada do fogo no canavial, o Gertúlio me prometendo que vai voltar a estudar ("agora vai dar, professora").


Agora nesses últimos dias de campanha, que começaram com uma cara mais cinzenta e sombria do que eu esperava lá em junho, vou buscar na lembrança dessa conversa um sol de alma.


Vou tentar lembrar das palavras do Gertúlio que nem um mantra: "É fogo no canavial, ninguém consegue apagar"…

6 comentários:

  1. É louvavel o trabalho do Lula... Mas é injusto associar td de bom ao seu governo, não reconhecer o "alicerce" construido por FHC é errado, feio... Ngm se lembra de como FHC pegou o Brasil, isso era o ANTES q o gertulio se referia.
    Sou Lula, sou Marina mas Dilma nunca.

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  2. Meu caro, não é o caso de achar errado ou feio. Apesar da velha-mídia insistir no legado benigno de FHC, o país que Lula recebeu em 2002 tinha problemas dificílimos a serem equacionados: inflação acima de dois dígitos, apontando para 30% ao ano; dívida interna de 680 bilhões de reais, com vencimento de curtíssimo prazo; desestruturação do setor público; defasagem da infraestrutura elétrica do país; entre outros. Não só Lula teve que enfrentar esses enormes desafios, como sacrificou o seu primeiro mandato para transitar a um novo modelo, de crescimento elevado e geração de empregos de boa qualidade. E não reconhecer o papel de Dilma nessa trajetória é erro grave, pois tanto nas Minas e Energia, quanto na Presidência do Conselho da Petrobrás e ainda mais como Ministra da Casa Civil, foi ela quem atuou na "cozinha" do governo, conduzindo o país para essa transição ao novo modelo de desenvolvimento.

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  3. caramba, mulher, to aos prantos, chorando de felicidade por esse seu texto. Muito obrigada! To repassando para todo mundo e mais um pouco.

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  4. "É verdade que tem gente que não vota em Dilma?"

    Também custo a acreditar...

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  5. Estranho o "Velha-Mídia" provavelmente estamos próximos de uma nova é isso?

    Sugiro uma breve pesquisa no google e um bom senso matematico para ver q a média de 760% de inflação de 90 a 94 é muito maior q a média de 8% de 95 a 2000 e de 12,5 de 2002...

    Mas talvez eu seja influenciado pela velha mídia q mantém estes números disponíveis porai pra quem tem interesse neles.

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  6. Sobre o velha x nova mídia, me proponho a um post mais detalhado, pois se trata de assunto dos mais pungentes.

    Sobre os índices de inflação, para reforçar teu argumento, poderíamos retroceder a 1989, e chegar a índices de 1.800% a.a.

    A questão não é essa. O problema é que, embora estabilidade monetária seja precondição necessária e desejável para qualquer economia, não é suficiente para fazê-la crescer e muito menos para promover a redução da desigualdade. Em mercados sujeitos a incertezas quanto à demanda futura (e um país de capitalismo tardio essa condição estará sempre presente), o investimento privado não ocorre em ritmo e volume necessários para mover a economia rumo ao pleno emprego. Portanto, nas condições deixadas por FHC, estaríamos condenados a uma paz de cemitério, à espera de um dinamismo de mercado que jamais vicejará por essas terras, não porque sejamos inaptos, corruptos ou vira-latas, mas porque tomamos o bonde da industrialização tardiamente, quando os demais concorrentes já estavam parrudos e bem nutridos a ponto de evitar que as forças da natureza (ou do mercado) lhes impusesse companhias indesejáveis.

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