14.4.08

SUS, urros e sussurros

Aproveitando os 20 anos de SUS (Sistema Único de Saúde) copio abaixo artigo que escrevi em dezembro de 2003 para a revista Caros Amigos. A quem interessar, recomendo também a leitura da revista Carta Capital desta semana, com a matéria de capa sobre o assunto.

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Em um cenário com ares de hortelã, um decadente apresentador de TV lê, em um jornal cinzento, que hospitais do município de São Paulo deixarão de atender pacientes do SUS. Escrachando o serviço público, comenta de testa franzida sobre as agruras de quem depende do sistema público de saúde e, em seguida, passa a palavra a uma loira encantadora que completa a tabelinha, convidando o telespectador a aderir ao seguro de saúde que patrocina o programa e assina o cenário refrescante.

Não por acaso, o SUS goza de péssima reputação entre aqueles que não o freqüentam e sofre de crônica escassez de recursos financeiros. No imaginário dos formadores de opinião, o sistema de saúde pública é um misto do que ouviram da empregada doméstica e do que souberam através dos programas de TV com cenários limpinhos e objetivos escusos.

Mas, felizmente, a realidade do SUS é bastante diferente desta que se cristalizou na cabeça da elite brasileira. Ainda que existam problemas de toda ordem, o SUS, junto com o seguro desemprego, é reconhecido como um dos mais bem sucedidos programas sociais da América Latina. Como demonstra um interessante estudo do IDEC
(“O SUS pode ser o seu melhor plano de saúde” -
http://www.idec.org.b),
a comparação entre o que se produz de saúde no âmbito do SUS e o que é oferecido pelo sistema privado não deixa margem para dúvidas. Basta citar, por exemplo, que enquanto o SUS custa aos cofres públicos R$ 20,00 por habitante/mês, os planos de medicina privada cobram em média cerca de R$ 100,00 e, ao contrário do que sugere o senso comum, as responsabilidades maiores e mais onerosas ficam a cargo do sistema público.

Enquanto os planos privados impõem limites e restrições ao atendimento desta ou daquela doença, e cobram muito mais dos clientes de maior risco (como os idosos), o SUS não só garante acesso universal a qualquer um que esteja no Brasil, como custeia com os mesmos R$ 20,00 todo um aparato de saúde coletiva, que passa despercebido por muitos de nós.

Mesmo aqueles que sequer sabem onde fica o ‘postinho de saúde’ mais próximo, são beneficiários diretos do SUS quando, inadvertidamente, saboreiam a sua picanha com rúcula, seja na churrascaria da esquina, seja no Rubaiayat. Serviços como o da vigilância sanitária, que zela pela qualidade dos produtos que comemos e se responsabiliza pela captura de animais doentes, são vitais para que possamos sobreviver aos riscos inerentes à vida nas metrópoles. Na minha cidade, por exemplo, a vigilância sanitária descobriu recentemente uma fabrica clandestina onde restos de queijo estragado eram triturados, ensacados em embalagens falsificadas e revendidos como parmesão. Não fosse a ação deste silencioso exército de agentes do SUS, talvez só viéssemos a saber da história após uma infecção intestinal e um estranho gosto azedo no céu da boca.

Portanto, até aqueles que gozam do mais caro e sofisticado plano de saúde privado, devem ao bom funcionamento do SUS a baixa probabilidade de se tornarem vítimas de epidemias, surtos ou contaminações.

Nascido com a Constituição de 88, o SUS vem passando por grandes avanços, como a adoção de práticas efetivas de controle social (i.é, a criação de conselhos locais de saúde com poder deliberativo e fiscalizatório) e a consolidação de mecanismos de sustentação financeira, como a Emenda 29 que estabelece patamares orçamentários mínimos para gastos com saúde nas três instâncias de governo.

Contudo, sob a tutela da ortodoxia econômica que se cristalizou há mais de uma década no segundo escalão da chamada área econômica do governo federal, mecanismos como o da Lei de Responsabilidade Fiscal, que limitam a expansão do financiamento das políticas sociais em momentos de crise e desemprego, tem trazido prejuízos sociais imensuráveis para o país. Sob o silêncio daqueles que lutaram contra a tirania do capital financeiro, assiste-se a uma guerra de foice dentro de cada gabinete dos chefes de governo, na tentativa de recompor orçamentos inviabilizados por uma lei de ferro que exige o pagamento das dívidas passadas (fermentadas por uma década de juros altos) e bloqueia o endividamento para o financiamento das demandas sociais que crescem com a crise econômica do país.

Ao contrário do que fazem e fizeram os países desenvolvidos nos últimos 50 anos, nós resolvemos atrelar o financiamento das políticas sociais (como saúde, educação e assistência social) ao comportamento do ciclo econômico, o que significa que quando a crise aperta, o dinheiro some e o desemprego come, o setor público também se contrai, deixando à sorte dos ventos aqueles que, por conta da brabeza da vida, precisariam mais do que nunca do remédio para pressão alta, da merenda e da creche para os filhos.

Aqui, quem diria, neste país castigado por uma das maiores dívidas sociais do planeta, mas governado por um pequeno time de economistas criado no maior mercado financeiro do mundo, executamos como ninguém uma política econômica pró-cíclica, que sacrifica o dinheiro de programas sociais, mas não descuida de superávits fiscais.

Em 2003, para encanto de Anne Krugger e de seus colegas de FMI, iremos retirar cerca de 150 bilhões de reais dos cofres públicos para pagamento de juros e serviços da dívida e gastaremos apenas R$ 44,00 bilhões para financiar a saúde pública. Isto significa que para cada brasileiro estamos gastando em saúde o equivalente a 100 dólares anuais, o que soa vergonhoso quando comparamos com o gasto de outros países: Dinamarca (2.060), Canadá (1.500), Portugal (615), Argentina (350), Uruguai (300), Coréia (260), Costa Rica (190), Marrocos (160), México (140), e, ufa, Bolívia (50) e Equador (13).

É claro que não se pode avaliar um sistema de saúde apenas pelo seus gastos, mas o SUS, pela sua amplitude, complexidade e resultados obtidos é um caso de êxito extraordinário. Ao contrário do que sugere o polêmico documento divulgado recentemente pelo Ministério da Fazenda (“Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002”), o SUS tem um custo per capita baixo, é relativamente eficiente no gasto e se caracteriza pela progressividade do sistema, isto é, apesar de universal, concentra seus gastos no atendimento às pessoas de mais baixa renda. Comparando com outros países em desenvolvimento, México e Argentina por exemplo, temos um sistema reconhecidamente melhor e mais eficiente que, gastando menos, zela pelo sarampo do morador da beira do Araguaia e pela cirurgia de medula do executivo da Avenida Paulista. Num país de dimensões continentais, clima tropical e 177 milhões de habitantes, cabe ao SUS os procedimentos mais custosos e mais difíceis de serem explorados pelo mercado. Enquanto o segmento privado fatura alto em procedimentos de média complexidade, o SUS se encarrega de tratar os desvalidos de um lado e os casos de alta complexidade e alto custo de outro (câncer, AIDS, Alzheimer).

Apesar disso - e neste ponto documento do Ministério da Fazenda tem razão em sua crítica - aos mais ricos é dada a possibilidade de deduzir do imposto de renda parte do que gastam com seus planos de saúde privado. Ou seja, daqueles parcos recursos do SUS, cerca de 1,5 bilhões de reais anuais são repassados aos usuários do sistema privado a título de deduções – valor que se aproxima do total gasto em 2002 com o programa Saúde da Família.

Por tudo isso, é preciso que pensemos a saúde pública deste país com mais responsabilidade e de forma menos leviana. As filas nos pronto socorros, a falta de medicamentos são apenas um lado de um sistema que faz muito com o pouco que recebe, mas precisa urgentemente de novos aportes financeiros. A luta fratricida intra-gabinetes, as práticas de uma engenharia orçamentária que se dedica a transferir para a rubrica da saúde gastos como saneamento, coleta de lixo, merenda escolar ou fornecimento de alimentos, é infame e inadmissível, principalmente em governos de esquerda que se legitimaram por meio da defesa de políticas públicas capazes de promover a inclusão social e superar a vergonhosa desigualdade em que nos metemos.

Por fim, nunca é demais lembrar que entre aqueles que são usuários regulares do sistema público de saúde, mais de dois terços se dizem satisfeitos com os serviços de saúde. O fato de nós, da elite, desconhecermos esta realidade, apenas confirma a progressividade do SUS.

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