18.4.08

num dianta!


Caro Ionesco,

Você melhor que eu sabe como em certos momentos desta vida as retas batem em retirada, o tempo embola, e um areião se esparrama pela vista da gente. Pior Ionesco, é quando você vive de pensar na economia, e o raio da economia parece que serve aos que não pensam ou aos que não vivem. Acontece que já faz um tanto de tempo, dez, doze anos que tenho dedicado minha bile à barbárie produzida pela ortodoxia infame que se apoderou do Banco Central. Mas, Ionesco, não dianta! Um país, cento e tantos milhões de gente de espinhaço dobrado, e o BC ali, firme, austero, sangrando dinheiro público suficiente para comprar toda a tapioca do mundo e de quebra sacrificando o nosso imberbe crescimento do PIB.
Ionesco, chego à conclusão que nem vale a pena gastar tinta - digo, bytes - com esta corja. Por isso, passo a reproduzir artigos que escrevi há anos atrás, que, tirantes uma ou outra referência, tratam exatamente das mesmas questões. É razoável, né não? Se eles não movem um palito, por que eu haveria de reinventar o assunto a cada dia?
Pois, então, segue o artigo abaixo, escrito nalgum dia de outubro de 2004, logo após mais uma extasiante reunião do Copom.
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mais cangaço, menos cagaço

Suponho que a última vez que estivemos parelhos com nossos vizinhos do norte foi ainda no tempo em que a poeira inspirava o sonho de um mundo a revelar. Aqui e lá, era no cavalo que sujeitos obstinados singravam o tabuleiro de seus continentes rumo ao deus dará. Enquanto a fortuna não vinha, o gado era o meio de vida e do couro se tiravam as coisas. Nos dois sertões foram comuns o choque com índios, a fé em Deus, a pólvora. Sob a austeridade daquela aventura árida, o cow-boy do faroeste e o cangaceiro do nosso sertão pareciam moedas de uma mesma face.

Coisa nenhuma. Do chapéu fizeram o pórtico de suas idiossincrasias. No cangaço, o couro dobrado em meia lua, acompanhando a linha dos ombros, com medalhas e asteriscos espalhados num espaldar imponente. No faroeste, o couro dobrado no sentido do vento, uma aerodinâmica própria à vastidão daquelas terras, sem cravos, sem brilhos, um chapéu com focinho e pose de vetor cartesiano.

Eis que num dos raros veículos de que dispunham para expressar suas diferenças, encontramos a senha para dois heróis de destinos tão dispares.

Sob as abas do chapéu do vaqueiro gringo, uma ética sem nuanças, um espírito pragmático, incisivo, guiado pelo sonho de um utilitarismo que misturava aos ideais protestantes a miragem de uma racionalidade infalível. Desde aquelas épocas a conquista do paraíso pelos norte-americanos se confundia com a busca por um progresso dos meios (...)
Nesta toada, fizeram e aconteceram e, pelos caprichos da história, transformaram-se na superpotência de hoje. Seus cow-boys ficaram como símbolo do voluntarismo maniqueísta, portadores de verdades, caminhando junto à cavalaria e se confundindo com o poder instituído. O sucesso do homem de Marlboro.

Do lado de cá do equador, sob o chapéu do cangaceiro, pouca sombra, muito brilho. Um totem cravado no meio daquele enrosco de mandacaru. No cenário atravancado, onde não se pretende o avanço, mas por certo a fuga, vive-se principalmente de ritos e flores. A honra e o perfume, o sagrado e a altivez do linho branco. No cangaço a vida passa à revelia da bússola, sem saber de tropas republicanas, sem laços com a máquina, nem com o funcionamento das estrelas. Os Yankees esfolavam os índios de dia e à noite fodiam suas damas de saloon. Lampião vinha de braços com Maria Bonita, um raro herói acompanhado de moça, parceira em tudo, nas investidas que aterrorizava os casarios, nos bailes de sanfona e zabumba, no puído da rede.

Alguns dirão que foram estes os males de nosso destino, como se destino fosse assim coisa de jeito de gente. Se esquecem do passado colonial, quando a elite ‘brasileira’ rascunhou nosso futuro a partir dos interesses dos sócios majoritários, às vezes a metrópole, muito mais vezes os capitais comerciais e financeiros. Ao contrário dos homens de Marlboro, que voltaram as costas à metrópole, por aqui o país, suas terras e seu povo foram sempre uma extensão dos negócios. Mas aos negócios nunca interessou que se fizesse de fato um país, que se distribuíssem as terras, que se desenvolvesse soberano o povo. Êta destino encruado! Sem o troféu do desenvolvimento, nosso chapéu de cangaceiro virou folclore e pecha de nosso atraso. (...)

(...) na cabeça dos cavaleiros da governabilidade, veste-se apenas um parco bonezinho, retrato estilizado da objetividade yankee. Sob insípida sombrinha, jogam seu xadrez acabrunhado, uma política autoritária, uma macroeconomia estúpida, uma governança estéril.

Artigo publicado originalmente na Revista Caros Amigos (edição de novembro de 2004).

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