20.9.09

bentham, o precificador


Não sou capaz de dizer com exatidão quando foi que me defrontei com o neologismo "precificar". Não deve fazer mais do que dez anos, provavelmente menos. Mas me lembro bem do espanto que tive ao perceber a boçalidade do conceito. Inspirados pela euforia ideológica que emanava dos mercados financeiros, economistas passaram a empregar o termo para designar a ação de estabelecer um preço hipotético para coisas, fenômenos ou processos que não estão no mercado, mas que segundo esse "exercício" podem ser hierarquizados numa escala de valores monetários, de fácil interpretação e comparação.

Por exemplo, através de pesquisas de opinião e de aproximações estatísticas, a 'precificação' permite estabelecer o "preço" hipotético da Mata Atlântica ou do Pelourinho. Uma vez decifrados, pode-se compará-los com os custos para preservá-los e verificar sé é economicamente aceitável despender recursos para salvá-los. Se o "preço" for inferior ao custo de preservação, conclui-se que a sociedade não considera razoável gastar o montante de dinheiro com estes patrimônios e que, portanto, devem permanecer ao deus dará. Outro exemplo clássico da aberração do método é a tentativa de comparar os custos das políticas de saúde para crianças ou para idosos, vis-a-vis o preço (o benefício) de mantê-los vivos. Como obviamente, a vida de uma criança "vale mais" que a de um velho, conclui-se que os recursos públicos devem custear primeiro a saúde das crianças. Por assustador que pareça, Banco Mundial, órgãos da ONU, assim como órgãos governamentais brazucas, aplicaram com afinco tais sistemáticas nos anos recentes, seduzidos pela suposta objetividade do método.

Esqueceram-se que os preços mal servem para medir as coisas simples, seja porque existem Preços com "P" maiúsculos (como a taxa de câmbio, a taxa de juros ou os salários) que contaminam e "desvirtuam" os demais preços, seja porque os ditos 'preços de mercado' dizem mais das condições da oferta e da demanda do que do valor intrínseco do bem. Ou seja, pode-se dizer que um bem vale pouco (paga-se pouco por ele), não porque seja um bem desinteressante, mas porque as restrições financeiras do momento são de tal ordem que inviabilizam a "compra" do bem. Além disso, e muito mais importante, é o fato de que muitos dos bens para o qual se volta o apetite dos precificadores estão 'fora do mercado' justamente porque têm um valor absoluto (e não relativo, como ocorre no sistema de preços), cuja existência ou execução não deve depender das circunstâncias orçamentárias, determinadas em última instância no plano político e não econômico.

Enfim, a "precificação", tão em voga ultimamente, se algo mede, me parece ser a vulgaridade e a pequenez de nossos dias. Quem diria? Depois de tantas e boas reflexões acadêmicas, alguns séculos de riquíssimos debates econômicos, sociológicos e filosóficos, nossa sociedade adota como mântra-síntese os argumentos rastaqueras de Jeremy Bentham, obscuro filósofo inglês que viveu entre 1748 e 1832, cujas idéias serviram à construção do 'utilitarismo', reduzindo a dimensão econômica ao cálculo utilitário.

Para ilustrar a paternidade e a crueza a que me refiro, segue um pequeno trecho de J. Bentham, extraído de um manuscrito seu, datado de 1782, sete anos antes da Revolução Francesa. Notem como a "precificação" já estava lá, prontinha para ser "vendida" à sociedade que cumprisse a tarefa de retirar da cena outros princípios para a valoração das coisas da vida:

"Tendo em meu bolso uma coroa (moeda) e não tendo sede, se eu hesitar entre a compra de uma garrafa de vinho tinto para refrescar a mim mesmo e despender a coroa para prover sustento de uma família que, na falta de toda assistência, está prestes a perecer, tanto pior para mim: mas está claro que, por mais que eu continue a hesitar, os dois prazeres, por um lado a sensualidade, por outro, o da simpatia, teriam para mim exatamente o mesmo valor de cinco shillings (frações da moeda), seriam exatamente iguais. Peço aqui uma trégua a nosso homem de sentimento e afeto, durante o tempo em que, por necessidade e somente por necessidade, eu falo e exorto a humanidade a falar uma linguagem mercenária. O termômetro é o instrumento para medir a temperatura; o barômetro é o instrumento para medir a pressão do ar. Quem estiver insatisfeito com a exatidão desses instrumentos deverá encontrar outros mais exatos, ou então, dizer adeus à filosofia natural. Dinheiro é o instrumento para medir a quantidade de prazer ou de dor. Quem estiver insatisfeito com a exatidão desse instrumento deverá encontrar outro mais exato, ou então dizer adeus à política e a moral. Portanto, que ninguém se surpreenda ou se escandalize ao me ver, ao longo desta obra, avaliar todas as coisas mediante o dinheiro. Somente desta maneira é que podemos obter partes alíquotas para nossas medidas. Se não pudermos dizer que uma dor ou um prazer vale tanto em dinheiro, do ponto de vista da quantidade, será vão dizer qualquer coisa sobre isso, não haverá nem proporção nem desproporção entre os castigos e os crimes."

2 comentários:

  1. Olá Manzano! Seu pífano e o escaninho é ótimo. Esse texto do Bentham resume tudo, né? "Cálculo dos prazeres e das dores". Segundo o autor, precisamos julgar sem os valores e emoções. Para medir o 'prazer e a dor' é preciso guiar-se por outro instrumento: o dinheiro.
    Sabe que me lembrei de umas aulas que tivemos com o Otaviano, no mestrado, sobre a 'precificação' e outras coisas mais. Sai da aula indignada com isso e revoltada em ver como o uso deste tipo de mecanismo é disseminado.
    É a tal linguagem mercenária que Bentham procura convencer a humanidade a falar: aquela a serviço do interesse monetário.
    Beijos,
    Nanda

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  2. Marcelo Manzano24/9/09 00:10

    Pois é, Nanda, foi lembrando daquela aula do Otaviano que escrevi o post. Me lembro que ainda por cima, quando questionei o método de precificação via pesquisa de opinião, ele disse que o problema que eu apontava, o "efeito Manzano " era eliminado pelo desvio padrão.

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