18.4.11

a vida é sonho

Nasça o homem sabendo que
Todo esse império deve ser por ele 
Conquistado ou perdido.

A frase, de Calderon de La Barca, da peça "A Vida é Sonho", serve bem ao excelente artigo do indignado Rubens Ricúpero, publicado ontem na Folha, no qual ele manifesta sua perplexidade não só com a promiscuidade dos agentes econômicos que levaram países inteiros à bancarrota, mas principalmente com a "ausência de indignação moral" de todos, que continuam tocando a vida como se nada tivesse acontecido, assistindo ao desmonte das instituições do bem estar social, como se fosse um desígnio de deus.

12.4.11

excelente artigo de delfim netto

Publicado originalmente no jornal Valor, do dia 12/04/2011

Custo/benefício e legítima defesa
Na organização do universo, Deus foi muito duro com os "cientistas sociais", dentre os quais se destacam os economistas. Para benefício desses últimos, entretanto, construiu um "homem" que age com racionalidade limitada num espaço permanentemente preenchido pela incerteza. Para superá-la abriga-se na imitação e nos costumes. Com um legítimo processo de abstração, esquecemos as expressões "limitada" e a "incerteza" e construímos uma hipótese poderosa: o homem age a partir de um cálculo racional absoluto, obedece a incentivos, procura maximizar os seus benefícios e não tem relação com outros homens. Como já suspeitava (numa nota de rodapé) o ilustre Thomas Robert Malthus (1766-1834), isso abria espaço para entendê-lo aplicando o cálculo diferencial criado por Newton (1642-1727).
E não deu outra! O conhecimento da economia avançou dramaticamente explorando aquela hipótese, até assumir o respeitável grau de "rainha" das ciências sociais. A "ciência" criada por Adam Smith exagerou: predou primeiro a psicologia e depois exerceu seu imperialismo sobre a antropologia, a arqueologia, o direito, a geografia, a história, a sociologia e a política! Enquanto isso ela mesma estava sendo predada pela bela e irresistível matemática! Foi um porre que durou pelo menos um século e meio. Terminou quando exagerou na formulação do "equilíbrio geral" num espaço topológico. Isso deu nascimento a uma revisão da hipótese básica. Redirecionou a observação e o estudo sobre a realidade em que se forma o comportamento do agente econômico, absorvendo e reintegrando o conhecimento das ciências sociais que havia predado.
Não há ciência capaz de recomendar ou não a liberdade de capitais
Nada é mais indicador desse movimento, renovador, do que está acontecendo, por exemplo, com relação à liberdade de capitais. No acordo de Bretton Woods (depois de uma penosa e longa discussão teórica) ela praticamente foi interditada; foi construída lentamente depois que o "gold standard" foi definitivamente destruído pela desvalorização do dólar com relação ao ouro no início dos anos 70 e foi consagrada quando o poder político nos EUA passou, de novo, às mãos do sistema financeiro (como acontecera antes de 1929). Iniciou-se na década dos 80 do século passado, a desmontagem da regulação construída nos anos 30. É um fato interessante que no Consenso de Washington, nos anos 80 do mesmo século, apesar da insistência do FMI, ela nunca foi reconhecida.
Agora, em menos de duas semanas, o FMI modificou a sua posição. Admite que em circunstâncias específicas o seu controle pode ser uma das "ferramentas" da política econômica dos países que estão sofrendo com a supervalorização das suas moedas. Esses, de fato não devem assistir passivamente à erosão de sua base industrial sujeita à competição desleal de países mais "espertos". A resposta imediata veio do organizado e poderosíssimo "lobby" financeiro, o "think-tank" Institute of International Finance, de Washington, financiado pelo sistema financeiro internacional, pela boca do seu economista-chefe, o sr. Phillips Suttle. Referindo-se diretamente ao real nos ensinou que sua valorização está associada ao desempenho e às perspectivas positivas da economia brasileira (o que é uma premissa verdadeira) e que, portanto, deveria ser vista com a maior naturalidade. Logo, admitir e lidar com essa realidade seria um instrumento mais útil do que a imposição de controles sobre o movimento de capitais (o que, infelizmente, é uma conclusão que não decorre da premissa).
O que é evidente nessa discussão? Que ninguém dispõe de uma "teoria científica" para recomendar ou não a liberdade de capitais. Além do mais, nenhuma pesquisa empírica feita com métodos estatísticos robustos pode resolvê-la. Trata-se, na mais benigna das hipóteses, de uma recomendação "normativa" que pode ou não ser útil, mas que, evidentemente, é contaminada por interesses. É uma questão cuja resposta depende das circunstâncias internas e externas de cada país. Dizer, como disse o sr. Suttle (e dizem alguns de nossos melhores economistas), que deixar o câmbio flutuar "naturalmente" é a melhor solução para nosso problema, não tem maior valor "científico". É apenas uma opinião, como todas as outras (inclusive a minha), ditada por diferentes visões do mundo. Afinal, deveria ser óbvio que a "liberdade de movimento de capitais" não está escrita nas "leis naturais" imutáveis da organização do universo.
Parece difícil de entender como ainda não tenhamos internalizado em nossas consciências:
1º) que a macroeconomia (inclusive seus mais recentes modelos) tinha muito pouca coisa a dizer sobre como funciona, de verdade, a economia real. Ela também é mais "normativa" (isto é, expressa mais a vontade de como o sistema deveria funcionar do que como ele funciona) do que "científica" e;
2º) que o aparato econométrico que às vezes aparentemente a sustenta (a "calibração") é terrivelmente deficiente para levar a qualquer conclusão segura. Aliás não deveria haver surpresa: a ciência só avança quando falha!
Ao contrário, portanto, da ideia que as políticas macroprudenciais são uma volta ao passado, elas simplesmente indicam nossa perplexidade com a tragédia a que levou a aparente sofisticação financeira. O momento não é de afirmações apodíticas, apoiadas numa ciência que não existe, mas de avaliação cuidadosa da relação custo/benefício, no curto e no longo prazo, das medidas que estamos tomando em legítima defesa...
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento

5.4.11

a perda de um grande historiador do pensamento econômico

Em 26 de fevereiro passado, morreu o pensador, sociólogo e economista canadense Gilles Dostaler que, entre outras destacadas obras, escreveu a que pode ser considerada a melhor biografia de J.M Keynes (Keynes and his battles) e que soube reconhecer no pensamento de Keynes a singularidade de suas idéias, sem reduzi-lo ou mistificá-lo.
 Reproduzo abaixo um artigo escrito em sua homenagem, que traduzi de forma um tanto mequetrefe do original em francês.

Em memória de Gilles Dostaler
Gilles Bourque, Bernard Élie, Robert Nadeau, Jean-Marc Piotte, Stéphane Pallage - professores, Universidade do Quebec em Montreal Le Devoir, 7 de Março de 2011, p. UM 6.

Gilles Dostaler pode ser considerado como um dos mais importante historiadores do pensamento econômico, não só em Quebec, Canadá, mas também no mundo acadêmico internacional.
Gilles Dostaler soube dissociar sua pesquisa de seu engajamento político e social. Desde seus anos de faculdade, ele foi um intelectual comprometido e ativo nos debates da sociedade. Na década de 1960, ele foi o primeiro membro do conselho editorial da Parti Pris, ("Tendência") uma revista mensal mantida por jovens intelectuais que teve um impacto considerável à época. Ele foi um dos primeiros a vincular a ascensão do movimento nacionalista na formação da nova classe média canadense, consequência do desenvolvimento de instituições do fordismo e do Estado-Providência.
Juntou-se à revista Socialism do Quebec  na década de sessenta, revista criada em 1964. Após ter feito campanha pelo RIN, ele foi um dos fundadores da CEI (comissão pela independência e pelo  socialismo), grupo dedicado a promover a independência do Quebec e à idéia do socialismo democrático. Foi também um dos organizadores da McGill francessa, que tornou-se famosa como  parte de um movimento mais amplo, reinvindicando a criação de novas instituições acadêmicas francófonas, após o que foram criadas na Universidade do Quebec em Montréal e na rede universitária do Quebec.
Jovem economista, ele esteve envolvido ativamente na organização de cooperativas de economia doméstica,  primeiras associações de consumidores do Quebec.
Endereço alternativo
Após estudos de doutoramento em Paris, tornou-se professor do departamento de sociologia, I’UQAM (1975) antes de se mudar para o departamento de ciências econômicas (1979). Durante a segunda metade da década de 1970, ele foi vice-presidente e presidente do sindicato dos professores da Universidade do Quebec e presidente do comitê de greve de professores de 1976. Ele também foi membro do Conselho Executivo da Federação Nacional de Professores do Quebec (1976-1978), membro do Comitê de Coordenação dos Cem, em 1980, que deu origem ao breve ‘Movimento Socialista’ liderado por Marcel Pepin.
No final dos anos 1970, Gilles Dostaler foi um dos fundadores da Associação de Economia Política (EPA) e foi seu primeiro presidente. A EPA tinha como objetivo difundir um discurso econômico alternativo e a crítica ao pensamento "neoliberal", que se tornaria, em seguida, mais e mais dominante.
Mais recentemente, Gilles Dostaler foi muito ativo no desenvolvimento da economia coletiva, dando  continuidade à sua vontade de contribuir para a disseminação do discurso econômico "alternativo" e de debates críticos junto à sociedade.
Com uma produção científica reconhecida internacionalmente, a produção de Gilles Dostaler é impressionante: não menos de dez livros traduzidos em várias línguas, cerca de 30 artigos nos principais periódicos de sua área, outros 30 capítulos de livros, uma dúzia de colaborações regulares em várias revistas e obras coletivas. Desde 2002, ele assinou no jornal francês Alternatives Éconómiques uma emocionante série sobre os principais autores de economia.
Nos últimos anos, o trabalho de Gilles Dostaler esteve centrado no pensamento de John Maynard Keynes. Economista, filósofo, filantropo, Keynes inspirou as políticas intervencionistas da década de 1930 para a superação da grande depressão. Além de O Pensamento Econômico depois de Keynes (com Michel Beaud), de 1993, Éditions du Seuil, Gilles Dostaler dedicou vários livros ao pensamento de Keynes, incluindo Keynes e suas batalhas (Albin Michel, 2005) traduzido para várias línguas, incluindo inglês, espanhol, árabe e japonês; Capitalismo e Pulsão de Morte (com Bernard Maris), também publicado pela Albin Michel, em 2009 e Keynes, para Além da Economia, com Thierry Magnier em 2009. Estes livros, que tiveram uma impressionante repercussão, são uma novidade vibrante.

Renovação do problema
Para Gilles Dostaler, não se consegue entender a formação do pensamento de um autor sem estudar todos os aspectos de sua vida. No caso de Keynes, ele não deixou nada de lado. Ele teve acesso privilegiado aos seus arquivos no King’s College, em Cambridge, leu cada uma de suas cartas, através de seus diários, seus escritos de juventude, estudou suas contradições, seu amor, sua sexualidade.
Gilles Dostaler realmente revolucionou a metodologia da história do pensamento econômico. A nova abordagem que ele desenvolveu progressivamente em seus muitos estudos consiste em articular uma síntese global de dois modelos de  análise distintos, que aqui se faz uma breve apresentação.
O primeiro desses modelos é uma reconstrução contextual das teorias econômicas: cada economista que contribuíu para a evolução do pensamento econômico de forma um pouco original não pode ser perfeitamente inteligível, de acordo com que postulou Gilles Dostaler, se o contexto social, político e cultural em que trabalhou não for totalmente reconstruído.
O pensamento de um economista  pode ser entendido apenas se for examinado o seu ambiente intelectual (como, por exemplo, suas parcerias intelectuais, seus gostos culturais, suas ligações políticas) se nós traçarmos meticulosamente seu trajeto (as perguntas a que foi submetido, as leituras que fez, as pessoas marcantes que conheceu), numa busca para  compreender sua integralidade, isto é, não só como um pensador, mas antes como um ser humano.
Em segundo lugar, Gilles Dostaler tinha a intenção de tirar rigoroso proveito das ferramentas desenvolvidas nas análises epistemológicas contemporâneas. Para Gilles Dostaler, cada um dos principais marcos da evolução do pensamento econômico podem ser explicados se reconhecermos o que ocorre como pano de fundo das rupturas  fundamentais com as formas anteriores de pensamento. O desafio, então, é tentar entender por que Marx rompe de forma radical com Ricardo e com os clássicos, por que Keynes também rompe com os clássicos e com os neoclássicos e por que, enfim,  um economista como Hayek, mais atento do que qualquer outro ao tema dos  limites cognitivos do agente econômico, trata de destacar de forma quase obsessiva a impraticabilidade de uma economia centralmente planejada.

O homem
Todos aqueles que o conheceram puderam testemunhar que, por trás do pesquisador rigoroso, havia um homem atencioso e carismático, um homem engajado, sempre militando por uma sociedade melhor, um homem que amava a vida em todas as suas dimensões.
O câncer, contra o qual ele lutou, não lhe tirou em nada o prazer para viver com grande intensidade cada momento. Se ele gostava de mergulhar nos arquivos de autores ilustres, Gilles Dostaler amava igualmente fazer uma refeição ou brigar com um salmão no rio de Gaspésie. Ele também era um grande fã de touradas. A caça e a pesca foram artes que permitiram-lhe inscrever-se no equilíbrio entre homem e natureza e de lembrar-lhe quanto somos pequenos ante esse mundo que nos hospeda.