19.8.15

a república das margaridas


Depois de tocar o fundo do poço, a Presidenta Dilma parece que resistirá no cargo. Subitamente, num espaço de poucos dias, os líderes da conspiração golpista se deram conta do estrago que provocariam no país caso se efetivasse o golpe. Aos 45 do segundo tempo perceberam que a queda de Dilma esgarçaria de vez o tecido institucional do país e a convulsão social jogaria a nação numa crise econômica disruptiva que, em última instância, lhes alcançaria os bolsos.

E quem foi que pôs o guizo no gato?

Por certo, não foi por zelo democrático, espírito republicano ou lustro ético que os donos do poder resolveram retroceder no golpismo. O que lhes impediu de cruzar a linha de giz foi a percepção de que os movimentos sociais tomariam as ruas e não aceitariam a ascensão de um governo golpista a esta quadra de nossa história.

Seria, portanto, equivocado e injusto atribuir a figuras como Renan, Temer e muito menos aos irmãos Marinho o mérito de terem colocado o pé na porta e evitado o conluio que já ocupava a antessala do gabinete da Presidenta. Menos tolos do que os do PSDB, eles apenas reagiram a tempo de evitar o pior e quem sabe ainda garantir uma posição melhor no tabuleiro quando o jogo recomeçar.

Diante do que assistimos nos últimos dias, mais do que nunca fica demonstrado o quão importante é a força e a densidade dos movimentos sociais na cena política brasileira. São eles, mais do que os partidos ou as instituições do poder formal que hoje servem de lastro concreto à manutenção da cidadania e dos valores democráticos que foram inscritos na Constituição de 1988.

A muitos de nós foi assustador assistir o judiciário, o legislativo e o executivo se dissolverem na correnteza mal cheirosa da campanha de desestabilização política que foi posta em prática nos últimos meses. Nada parecia parar em pé.

Até que as Margaridas, com indelével legitimidade, vieram nos redimir.

Num país com o abismo social como o Brasil, a legitimidade dos movimentos sociais compostos por mulheres e homens batalhadores decorre, entre outras coisas, do fato de que, em última instância, são eles que têm a vida esfacelada quando os habitantes da casa grande se dão ao luxo de atropelar as regras que não mais lhes convém.

Na condição de economia periférica, com elites historicamente subordinadas a interesses externos, estamos sempre triscando o enredo de “republica bananeira”. E, se pelo menos desta feita o desfecho bananeiro foi evitado, foi pela presença das Margaridas e tantos outros movimentos similares que permaneceram na retaguarda.

Contamos com movimentos sociais fortes. Este é, precisamente, um diferencial importante do Brasil em relação à enorme maioria dos países.

A “trégua”, ofertada a Dilma pelos carcarás de sempre, não deveria, contudo, levar a presidente a conceder ainda mais em seu governo. Dilma, que já estava em dívida com aqueles que votaram nela em outubro de 2014, agora é duplamente devedora dessa pequena, porém, valorosa parcela de seus eleitores que se organizam em meio às dificuldades e agruras da vida e ainda encontram forças para enfrentar de peito aberto os charlatães do andar de cima.

6.7.15

Piketty: a Alemanha nunca pagou

Em entrevista concedida ao jornal alemão 'Die Zeit', o famoso economista Thomas Piketty aponta de forma contundente a posição contraditória da Alemanha de Angela Merkel frente à crise da dívida grega quando comparada com a própria experiência histórica de endividamento e - não pagamento - da Alemanha.(a entrevista original está disponível aqui)





DIE ZEIT: Nós alemães deveríamos ficar felizes porque até o governo francês está alinhado com o dogma alemão de austeridade?
THOMAS PIKETTY: Absolutamente não. Essa não é uma razão para a França, nem para a Alemanha, e nem especialmente para a Europa, para ser feliz. Eu tenho muito mais medo que os conservadores, especialmente na Alemanha, estejam prestes a destruir a Europa e o ideal europeu, tudo por causa de sua chocante ignorância da história.
DIE ZEIT: Mas nós, alemães, já nos reconciliamos com a nossa própria história.
PIKETTY: Mas não quando se trata de pagamento de dívidas! O passado alemão, a este respeito, deveria ter grande significado para os alemães de hoje. Olhe para a história da dívida nacional: Grã-Bretanha, Alemanha e França estiveram todas uma vez na situação da Grécia de hoje - na realidade estavam muito mais endividadas. A primeira lição que podemos tirar da história das dívidas públicas é que não estamos diante de um problema novo. Houve muitas maneiras de pagar as dívidas, e não apenas uma, como Berlim e Paris querem fazer os gregos acreditarem.
DIE ZEIT: Mas eles não deveriam pagar suas dívidas?
PIKETTY: Meu livro narra a história de renda e riqueza, incluindo a das nações. O que me impressionou enquanto eu estava escrevendo é que a Alemanha é realmente um exemplo singular de um país que, ao longo de sua história, nunca pagou a sua dívida externa. Nem após a Primeira, nem após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, tem frequentemente feito outras nações pagarem, tal como depois da Guerra Franco-Prussiana de 1870, quando ela exigiu reparações maciças da França e de fato as recebeu. O Estado francês sofreu por décadas sob essa dívida. A história da dívida pública está cheia de ironia. Ela raramente se aproxima de nossos ideais de ordem e justiça.
DIE ZEIT: Mas, certamente, não podemos tirar a conclusão de que não é possível fazer melhor hoje?
PIKETTY: Quando ouço os alemães dizerem que mantêm uma postura de rigidez moral sobre a dívida e que acreditam fortemente que as dívidas devem ser pagas, eu fico pensando: só pode ser piada! A Alemanha é o país que nunca pagou suas dívidas. Ela não tem legitimidade para ensinar outras nações.
DIE ZEIT: Você está tentando descrever os Estados que não pagaram as suas dívidas como vencedores?
PIKETTY: A Alemanha é precisamente esse Estado. Senão, vejamos: a história nos mostra duas maneiras de um Estado endividado sair da inadimplência. Uma foi demonstrada pelo Império Britânico no século 19 depois de suas guerras caras contra Napoleão. Esse é o método lento, que está agora sendo recomendado à Grécia. O Estado reembolsando seus débitos através de uma rigorosa disciplina orçamentária. Isso funcionou, mas demorou um tempo extremamente longo. Por mais de 100 anos, os britânicos deram entre 2-3 por cento de sua economia para pagar suas dívidas, o que era mais do que eles gastavam com escolas e educação. Isso não precisava ter acontecido, e isso não deveria voltar a acontecer hoje. O segundo método é muito mais rápido. A Alemanha provou isso no século 20. Essencialmente, ele tem três componentes: a inflação, um imposto extraordinário sobre riqueza privada, e um alívio da dívida.
DIE ZEIT: Então você está nos dizendo que o “milagre econômico” Alemão foi baseado no mesmo tipo de alívio de dívida que hoje negamos a Grécia?
PIKETTY: Exatamente. Quando a guerra terminou em 1945, a dívida da Alemanha representava mais de 200% do seu PIB. Dez anos mais tarde, pouco restava: a dívida pública estava abaixo de 20% do PIB. Na mesma época, a França conseguiu uma recuperação semelhante e astuta. Nós nunca teríamos conseguido essas reduções incrivelmente rápidas das dívidas através da disciplina fiscal que nós recomendamos hoje à Grécia. Pelo contrário, ambos os nossos estados empregaram o segundo método, com os três componentes que mencionei, incluindo alívio da dívida. Pense sobre o acordo da dívida de Londres de 1953, pelo qual 60% da dívida externa alemã foi cancelada e a sua dívida interna foi reestruturada.
DIE ZEIT: Isso aconteceu porque as pessoas reconheceram que as altas reparações exigidas da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial foram uma das causas da Segunda Guerra Mundial. Naquela ocasião, queria-se perdoar os pecados da Alemanha!
PIKETTY: Bobagem! Isso não teve nada a ver com maior clareza moral; foi uma decisão política e econômica racional. Eles reconheceram corretamente que, após grandes crises que criaram enormes cargas de dívida, em algum momento as pessoas precisam olhar para o futuro. Não podemos exigir que as novas gerações paguem por décadas pelos erros de seus pais. Os gregos, sem dúvida, cometeram grandes erros. Até 2009, o governo de Atenas forjou sua contabilidade. Mas, apesar disso, a nova geração de gregos não é mais responsável pelos erros de seus anciãos do que foi a geração de jovens alemães nas décadas de 1950 e 1960. Temos de olhar para frente. A Europa foi fundada sobre o perdão de dívidas e investimentos no futuro. Não foi sobre a ideia de penitências infinitas. Nós precisamos nos recordar disso.
DIE ZEIT: O fim da Segunda Guerra Mundial foi um colapso da civilização. A Europa era um campo de morte. Hoje é diferente.
PIKETTY: Negar os paralelos históricos com o período do pós-guerra seria um equívoco. Vamos pensar sobre a crise financeira de 2008/2009. Esta não foi apenas uma crise qualquer: foi a maior crise financeira desde 1929. Assim, a comparação é bastante válida. Isto é igualmente verdade para a economia grega: entre 2009 e 2015, o PIB caiu em 25%. Isto é comparável às recessões na Alemanha e na França entre 1929 e 1935.
DIE ZEIT: Muitos alemães acreditam que os gregos ainda não reconheceram os seus erros e querem persistir em sua via de gastos ilimitados.
PIKETTY: Se começar a chutar Estados para fora, em seguida, a crise de confiança em que a zona do euro se encontra hoje só vai piorar. Os mercados financeiros acionarão imediatamente o próximo país. Este seria o início de um longo período de arrastada agonia, em cuja prevalência corremos o risco de sacrificar o modelo social europeu, a sua democracia, de fato, sua civilização sobre o altar de uma política de austeridade conservadora e irracional.
DIE ZEIT: Você acredita que nós, alemães, não somos suficientemente generosos?
PIKETTY: Do que você está falando? Generosos? Atualmente, a Alemanha está lucrando com a Grécia, uma vez que concede empréstimos com taxas de juros relativamente altas.
DIE ZEIT: Que solução você sugeriria para esta crise?
PIKETTY: Precisamos de uma conferência sobre todas as dívidas da Europa, assim como após a Segunda Guerra Mundial. A reestruturação de toda a dívida, não só na Grécia, mas em vários países europeus, é inevitável. Ainda agora, perdemos seis meses de negociações completamente obscuras com Atenas. A ideia da Comissão Europeia de que a Grécia irá atingir um excedente orçamentário de 4% do PIB e vai pagar de volta as suas dívidas dentro de 30 a 40 anos ainda permanece sobre a mesa. Sugerem que eles vão chegar a um por cento de superávit em 2015, depois a dois por cento em 2016, e a três e meio por cento em 2017. Totalmente ridículo! Isso nunca vai acontecer. No entanto, continuamos a adiar o debate necessário até o dia de São Nunca.
DIE ZEIT: E o que aconteceria após os grandes cortes de dívida?
PIKETTY: Uma nova instituição europeia seria necessária para determinar o déficit orçamentário máximo permitido a fim de evitar o crescimento das dívidas. Poderia ser, por exemplo, um comitê do Parlamento Europeu composto por legisladores dos parlamentos nacionais. Decisões orçamentárias não devem estar fora dos limites dos legislativos. Para minar a democracia europeia, que é o que a Alemanha está fazendo hoje, insistem que os Estados permaneçam na penúria, sujeitos a mecanismos que estão sendo manejados a partir de Berlin – isso é um erro grave.
DIE ZEIT: Seu presidente, François Hollande, fracassou recentemente ao criticar o pacto fiscal.
PIKKETY: Isto não ajuda em nada. Se, nos últimos anos, as decisões na Europa tivessem sido alcançadas de forma mais democrática, a política de austeridade em curso na Europa seria menos rigorosa.
DIE ZEIT: Mas nenhum partido político da França está participando. A soberania nacional é considerada sagrada.
PIKETTY: De fato, em contraste com a França e seus inúmeros crentes da soberania, na Alemanha há muito mais gente envolvida no debate sobre o restabelecimento da democracia europeia. Além do mais, nosso presidente ainda se apresenta como um prisioneiro do fracassado referendo de 2005, sobre a Constituição Europeia, que malogrou na França. François Hollande não compreende que muita coisa mudou por causa da crise financeira. Temos que superar nosso próprio egoísmo nacional.
DIE ZEIT: Que tipo de egoísmo nacional que você enxerga na Alemanha?
PIKETTY: Eu acho que a Alemanha foi muito marcada pela sua reunificação. Havia um grande temor que aquele processo pudesse levar à estagnação econômica. Mas a reunificação acabou por ser um grande sucesso graças a uma rede de segurança social em funcionamento e um setor industrial intacto. Entretanto, a Alemanha tornou-se tão orgulhosa de seu sucesso que ministra lições para todos os outros países. Isto é um tanto infantil. Claro, eu entendo o quão importante o sucesso da reunificação é para a história pessoal da Chanceler Angela Merkel. Mas agora a Alemanha tem de repensar as coisas. Caso contrário, a sua posição a respeito da crise da dívida será um grave perigo para a Europa.
DIE ZEIT: Que conselho você daria para a Chanceler?

PIKETTY: Aqueles que querem insistir na saída da Grécia da zona euro hoje vão acabar no lixo da história. Se a Chanceler quer garantir seu lugar nos livros de história, assim como [Helmut] Kohl fez durante a reunificação, então ela deve buscar uma solução para a questão grega, incluindo uma conferência das dívidas onde possamos começar com uma lousa limpa. Mas com a revisão, a disciplina fiscal deverá ser muito mais forte.

Traduzido do inglês por Marcelo Manzano.